domingo, 17 de julho de 2011

Por uma visão melhor da língua

O pequeno ensaio que publico abaixo foi redigido na condição de estudante de Letras. Mas, como não poderia deixar de ser, o historiador de debates e o professor se intrometem no texo. Por isso, e pela esperança de que haja nele algo que valha a pena ser compartilhado, o trago a este espaço.


Por uma visão melhor da língua



Já faz algum tempo que a distribuição, pelo Ministério da Educação, do livro Por uma Vida Melhor tem gerado intensos debates na mídia brasileira. Tudo porque um dos capítulos introdutórios da obra, voltada ao programa Educação para Jovens e Adultos (EJA), traz algumas considerações sobre a norma popular. Os trechos polêmicos circulam pela internet, alimentando reações positivas, principalmente por parte de especialistas em linguagem, e, em medida muito maior, negativas, ancoradas em argumentos conservadores bastante antigos, como veremos a seguir.

O pomo da discórdia se encontra na apresentação de regras de concordância nominal e verbal comuns na fala de parcela significativa de nossa população, como em “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” e “Nós pega o peixe”, exemplos citados pelos autores da obra.[1] De acordo com o tão criticado texto, em ambos, apesar de alguns elementos estarem no singular, quem ouve as frases sabe que há, respectivamente, nas mensagens, mais de um livro ou mais de uma pessoa envolvida na ação. Quem possui algum conhecimento básico em Linguística percebe na sentença uma verdade científica, facilmente verificada na realidade empírica. E mais, concorda que, como apresentado pelos autores, em contextos de comunicação popular, este tipo de enunciado é mais eficiente, dado que é mais facilmente reconhecido pela comunidade interpretativa que o recebe.

Gramática normativa tradicional x perspectiva linguística

Mas, se o fato lingüístico discutido no livro é simples e real, a que se deve, então, tamanha polêmica? A resposta parece óbvia: pesem décadas de desenvolvimento, a Linguística, enquanto disciplina científica, não atingiu público muito maior do que os meios acadêmicos especializados, pelo menos no Brasil. Como aponta Sirio Possenti, a revolução copernicana, que modificou o senso comum no tocante a dados aparentes sobre a realidade física, não possui paralelo em questões de linguagem.[2] Ao contrário, os parâmetros das gramáticas normativas tradicionais, em geral, continuam pautando a relação dos falantes com a sua língua, como fica claro pelo teor dos debates em torno do referido livro.

A força da tradição nomativista, que estabelece regras arbitrárias sobre o certo e o errado, baseadas em textos literários antigos, parece, assim, se impor frente à abordagem científica da língua. Certa tensão entre a perspectiva lingüística e a gramatical já se manifestava nos apontamentos de Ferdinand de Saussure, compilados em seu Curso de Linguística Geral, publicação póstuma de 1916: “A gramática tradicional ignora partes inteiras da língua como, por exemplo, a formação das palavras; é normativa e crê dever promulgar regras em vez de comprovar os fatos; falta-lhe visão de conjunto; amiúde, ela chega a não distinguir a palavra escrita da falada etc”.[3]

Vale ressaltar que a antiguidade de tal tensão precede, inclusive, a constituição da Linguística como disciplina. Como não lembrar os debates entre o escritor brasileiro José de Alencar e seus contemporâneos portugueses, e partidários locais da perspectiva lusitana, no século XIX? Enquanto estes recriminavam o uso de termos e expressões comuns na fala da elite culta de nosso país, não previstos nos compêndios gramaticais de além-mar, aquele defendia a modernização da linguagem literária. Claro que Alencar, apesar de seu reconhecido viés romântico, nunca propôs a inclusão, e conseqüente valorização, da linguagem popular na norma padrão. Muitos de seus argumentos, inclusive, recorriam ao peso da autoridade, verificando ocorrências de construções similares às suas nos clássicos da literatura. Mas, justiça seja feita, o escritor chegou a prescrever a pesquisa empírica da língua culta falada no Brasil, posição bastante avançada, levando em conta o campo de possibilidades de que dispunha e o ambiente pré-científico, no que concerne ao trato da língua, em que vivia.

Seguindo a análise do debate, e do momento, feita por Carlos Alberto Faraco, sabemos que o que se punha em discussão – como ainda parece ser nosso caso – tinha maior relação com as disputas ideológicas de então do que com a reflexão efetiva sobre a língua. A necessidade de caracterizar o Brasil como nação branca e europeia, única forma de escapar às suspeitas de barbárie que pesavam sobre o Novo Mundo, levou à vitória da “lusitanização” da norma, quer dizer, da adoção definitiva de princípios da unidade da língua e de escritores portugueses como modelo de correção, com o conseqüente cultivo da prática de identificar os “erros” cometidos pelos brasileiros.[4] Tudo se passa como se esse “vício de origem”, nos termos de Faraco, condicionasse nossa visão sobre a língua falada no país: “Esse quadro todo contribuiu significativamente para a construção não só de diretrizes para o ensino, mas principalmente para a disseminação e consolidação da atitude normativista (que ainda nos atormenta), combinando o purismo com a síndrome do erro”.[5]

A variação lingüística

Há, portanto, pelo menos desde o século XIX, presente nos debates sobre a(s) língua(s) nacional (is) a dicotomia entre o imobilismo das regras da gramática tradicional e o dinamismo, sincrônico e diacrônico, da língua viva. Se, seguindo Saussure, reconhecemos que o tempo altera todas as coisas, ainda mais necessário, no caso, é atinar para o fato de que a variação, num mesmo eixo temporal, também ocorre na língua, seguindo de perto as diferenças sociais, culturais, regionais e de geração, por exemplo, sem falar na própria distinção já mencionada entre escrita e oralidade.

No entanto, o engessamento da língua efetuado pela tradição normativista não somente esquece o fenômeno da variação, negando coerência e lógica gramatical às variantes desprestigiadas socialmente da língua portuguesa falada no Brasil, mas também mascara o aspecto arbitrário e político da norma padrão. Há que se pensar, assim, na função histórica assumida pela norma culta de estabelecer distinções sociais: o domínio do modelo tradicional de gramática sempre garantiu o acesso privilegiado, em um país com problemas crônicos de educação ainda não resolvidos, de membros da elite econômica e política a cargos públicos e empregos considerados “nobres”, como a direção de empresas privadas. Como num círculo vicioso, a norma padrão se distanciou, inclusive, das regras utilizadas pelas altas camadas da sociedade, daí o termo “norma cultuada” utilizado nos meios especializados para defini-la. [6] Sua utilização proficiente ficou ainda mais elitizada, alimentando o círculo e garantindo a posição dos “iluminados” pelo saber ortodoxo da língua. A idealização da norma culta, portanto, referendou, ao longo de gerações, o status quo.

O livro Por uma Vida Melhor tem como mérito não somente a desmistificação da norma padrão, mas também o reconhecimento da legitimidade das variedades lingüísticas. Como mostrado por Luiz Percival Leme de Britto, a questão que deve pautar o conhecimento cientificamente orientado da língua e da linguagem deve ir além da mera verificação da adequação dos modos de falar a situações específicas, mas reconhecer que

“a cada variedade lingüística corresponde uma gramática e diferentes níveis de registro e que, portanto, é somente no interior de cada variedade que a noção de correto pode se estabelecer, e sempre a partir da consideração da situação de interlocução efetiva, de modo que determinado tipo de registro pode ser adequado em dada circunstância e totalmente inadequado em outra”.[7]

O preconceito lingüístico e o papel da escola

Se o papel da escola é ensinar aquilo que seu público atendido não conhece, é verdade que o foco da aprendizagem deve ser, ainda que por maneiras heterodoxas, a norma culta (não, necessariamente, a “cultuada”) utilizada em nossa sociedade. Quer dizer, para garantir a democratização das oportunidades, é necessário que se estenda a toda a população o domínio da variante prestigiada. É o que defende, por exemplo, Sirio Possenti, em seu livro Por que (não) ensinar gramática na escola. Nesse sentido, todo o debate em torno da obra distribuída pelo MEC se mostra, no mínimo, desvirtuado, já que o que deveria ser discutido é o cumprimento do dever da escola, não a infidelidade dos autores à ortodoxia gramatical. Ou seja, se o livro didático não negligencia tal função, não há sentido para tanto barulho! No próprio excerto divulgado pela mídia, e defenestrado pelos puristas da vez, encontramos a seguinte recomendação dos autores: “Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades [norma culta e norma popular] e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala”.

Mas a função da escola não pode ser tão reduzida. Se se ensina aquilo que não se conhece, o fazemos pela compreensão, após muito acúmulo de discussão em educação, de que a razão de ser da escola se ancora em demandas muito mais profundas: trata-se de ver o ensino de forma ampla e humanista. Ou seja, não podemos tomar a escola apenas como o lugar do conhecimento técnico, mas enquanto espaço de transformação. Isso significa que o público atendido, seja o alunado em idade escolar ideal sejam jovens e adultos que não tiveram o direito à educação respeitado enquanto crianças, deve ser preparado para o exercício pleno da cidadania. Se queremos cidadãos criticamente instrumentalizados, é necessário romper com formas cristalizadas de enxergar o mundo, que, como vimos, no caso da língua e da linguagem, apenas legitimam o sistema de exclusão e marginalização que se reproduz há séculos no país.

Não devemos ideologizar o debate, mas politizá-lo, no sentido de refletir sobre as relações de poder que efetivamente existem na realidade concreta. No caso da língua, como em muitos outros, a melhor maneira de romper com o stablishment é desnudar, cientificamente, o objeto em litígio, sem julgamentos de valor, o que, de fato, se apresenta nas vozes já arcaicas da perspectiva gramatical tradicional. Romper com o preconceito lingüístico, quer dizer, com a visão que condena, de maneira arbitrária, formas legítimas de se comunicar, pelo simples fato de não ser a sua, ou de não ser aquela consagrada pelas classes altas, como quer Marcos Bagno, é tarefa de especialistas em linguagem e de todos que, de alguma forma, se comprometem com uma sociedade mais justa: “Onde não existe uma política lingüística bem-informada e esclarecida, a ignorância (ou a má-fé) se instala com tranqüilidade”.[8]

Talvez os autores, os editores e mesmo o MEC tenham sido ingênuos na forma como abordaram o problema, sem mensurar a possível reação. Mas o tamanho da polêmica e o nível do contra-ataque só reforçam a avaliação de que a iniciativa é válida e urgente.


[1] Conforme CIEGLINSKI, Amanda. Confira trechos do livro Por uma Vida Melhor que tratam da chamada “norma popular”. Publicado em 19/05/2011. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-19/confira-trechos-do-livro-por-uma-vida-melhor-que-tratam-da-chamada-%E2%80%9Cnorma-popular%E2%80%9D.

[2] POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 24ª reimpressão. Campinas: Mercado de Letras, 2010, pari passim.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27ª edição. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 98.

[4] FARACO, Carlos Alberto. A questão da língua: revisitando Alencar, Machado de Assis e cercanias. In:Línguas e instrumentos lingüísticos, n. 7, 2001, p. 43.

[5] Ibidem, p. 48.

[6][6] Ana Stahl Zilles utiliza o termo “língua culta” para designar a língua dos falantes cultos, como professores, médicos, engenheiros, jornalistas etc, em oposição ao termo “padrão”, que identifica a língua que sofreu processo de padronização técnica, “que inclui a confecção de dicionários, de gramáticas e a explicitação de normas, inclusive por órgãos como a Academia Brasileira de Letras, e de leis, como as diversas reformas ortográficas promovidas pelo governo”. ZILLES, Ana Maria Sthal. Algumas características do português do Brasil. In: GUEDES, Paulo Coimbra (org.). Ensino do português e cidadania. Porto Alegre: PMPA, SMED, p. 91.

[7] BRITTO, L. P. A sombra do caos: ensino da língua x tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 2002, p. 53.

[8][8] BAGNO, Marcos. Preconceito linguistico: o que é, como se faz. 52ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 24.


quinta-feira, 7 de julho de 2011

Projeto Amora

Desde o início do ano atuo como professor de História no Colégio de Aplicação da UFRGS. Na instituição, integro o Projeto Amora, voltado para a reestruturação curricular de quintas e sextas séries (a partir de 2012, sextos e sétimos anos). Um dos instrumentos de aprendizagem utilizados no segmento é a iniciação científica. Trata-se de espaço na carga horária em que cada professor orienta um grupo de pequenos investigadores. Os assuntos e problemas de pesquisa são escolhidos pelos alunos, de acordo com seus interesses, e o objetivo do trabalho é o desenvolvimento cognitivo, através de habilidades e competências como observação e reconstituição de dados, antecipação, comparação/contraposição, explicação e justificativa.

Convido a todos a visitar as páginas com os resultados das pesquisas de meus orientandos na primeira edição de projetos de 2011, através da wiki http://professorzalla.pbworks.com.

Segue, também, o endereço do Projeto Amora: https://paginas.ufrgs.br/projetoamora