quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Gauchismo e política

Artigo de opinião publicado no jornal Zero Hora, de 15 de setembro, sobre a cofluência entre a Semana Farroupilha e a disputa eleitoral.


Gauchismo e política


Pensar as relações do gauchismo com a política no Rio Grande do Sul nos leva à sua gênese como discurso literário no século 19. A “era das nações”, em que a soberania deslocou-se do reino dinástico, de legitimação divina, para o “povo”, precisou, evidentemente, circunscrever as características e os limites do nacional e, por conseqüência, do popular. O gaúcho, herdeiro do “monarca das coxilhas” e do “centauro da pampa”, se tornou objeto de investimento de nossos intelectuais – locais e cortesãos, vale dizer –, comprometidos com a criação de imagens de um Brasil diverso, mas unificado. Nacionalista, o modelo do centauro era também romântico. Como tal, foi marcado pela crítica do progresso capitalista, responsável pela desarticulação da organização rural tradicional. Essa dupla formatação foi recuperada e atualizada pela ficção, pelo jornalismo, pela historiografia e pelo movimento tradicionalista, no século 20, com intenções, direta ou indiretamente, também políticas: a asserção das peculiaridades – e, para alguns, da superioridade – do regional.

Ao mesmo tempo em que o mito literário se difundiu em nossa sociedade, ganhando novas dimensões, a fórmula da bombacha, do lenço atado ao pescoço, do cavalo e, muito recentemente, da prenda na “garupa”, se tornou suficientemente cristalizada a ponto de definir a solidariedade identitária sul-rio-grandense. Por mais que ela esteja longe de ser consensual, seu apelo no imaginário local é inegável. Basta lembrarmos sua grande ressonância mesmo em antigas colônias de imigração alemã e italiana, interpretada por nossos antropólogos justamente como uma tentativa de afirmação social pela incorporação do discurso dominante no contexto luso-brasileiro. Não menos difícil é encontrar cidadãos sem o menor vínculo com o campo, sequer aqueles laços simbólicos proporcionados pela adesão ao tradicionalismo, que reconhecem neste modelo ideais tidos como próprios de todo habitante do estado: cito, para ficarmos no domínio do óbvio, o gosto pela distância e pelo torrão natal, traduzidos na defesa da liberdade e na contestação do centralismo opressor.
Com contornos políticos dessa maneira desenhados e com o grande alcance do gauchismo em todo o estado, fica fácil entender a atração ainda hoje exercida por ele sobre a classe política local. Nas vésperas de eleições regionais e nacionais, vemos candidatos dos mais variados matizes fazendo, em maior ou menor medida, reverência direta ao mito ou aos signos identificados com o gaúcho/nativo. Nos últimos dias, com a suspensão ritual de nossa sociedade para a celebração do gaúcho mítico, durante a Semana Farroupilha – atividade de Estado, vale ressaltar –, seu apelo se intensifica manifestamente. Pensar sua história e sua configuração é importante para lembrarmos que, como outrora, por trás dos lenços brancos e vermelhos existem concepções e ideias que fundamentam ou legitimam projetos políticos inclusive divergentes.

Se, de um lado, a plasticidade que permite sua utilização tanto pela direita quanto pela esquerda é sintoma da pluralização recente de seus sentidos, fruto da entrada dos antigos críticos da ideologia gaúcha na disputa pela definição do mito, o que talvez seja benéfico para o debate democrático, de outro, o eleitor responsável não pode perder de vista a complexidade do jogo político em função da afetividade declarada pelo modelo da bombacha. Se hoje, como ontem, o centauro responde a interesses específicos, ainda que mais variados, sua força continua centrada em seu potencial de homogeneização e, portanto, de simplificação. A escolha consciente, dessa forma, não pode ser pautada por um simples brado de amor ao Rio Grande, mas pela avaliação sistemática da trajetória, das ações e dos projetos, ou seja, dos compromissos assumidos pelos partidos e candidatos. Perguntar “por que este discurso?” mostra que outra indagação já bastante recomendada – “a quem ele serve?” – continua pertinente.
ZALLA, J. Gauchismo e política. Zero Hora. Porto Alegre, 15/09/2010, p. 23.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O gaúcho como o outro

Artigo publicado no n. 15 da revista Norte, de Porto Alegre. Segue abaixo pequeno trecho.



O gaúcho como o outro

A recente avaliação, durante a Copa do Mundo de Futebol, do ex-jogador, hoje médico e articulista esportivo, Sócrates sobre o conservadorismo supostamente gaúcho do ex-técnico da seleção brasileira Dunga, declarada em entrevista ao jornal britânico The Guardian, gerou intensos debates na mídia impressa local e na internet. Os protestos ultrapassaram a torcida da seleção, demonstrando desconforto entre setores diversos da sociedade sul-rio-grandense. Escritores, músicos e mesmo historiadores saíram em defesa do torrão natal, apelando para seu histórico de rebeldia ou justificando a diferença em relação ao todo nacional pela sua complexa composição cultural, fruto da ocupação tardia e etnicamente diversa. Alguns “nativos” chegaram mesmo a olhar o episódio com certa complacência, concordando (e lamentando) o atraso do contexto regional. Tal variedade de opiniões, por si só, já colocaria em cheque a unidade gaúcha, aclamada por habitantes, vale dizer, dos dois lados do Mampituba. Contudo, foi pouco comentado o deslize lógico da fala de Sócrates: os gaúchos são os brasileiros mais reacionários, o que daria o toque pessoal de Dunga à seleção, deixando-a, assim, sem cara de brasileira. A aparente contradição é bastante significativa, pois está solidamente assentada naquele imaginário nacional que aponta o gaúcho como seu “outro” interno.



Texto completo em: www.revistanorte.com.br

ZALLA, J. O gaúcho como o outro. Norte. Porto Alegre, agosto/setembro de 2010, p. 20-22.