domingo, 22 de agosto de 2010

Por que (ainda) ler Homero

Por que (ainda) ler Homero



Homero e seu guia, de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)

Cerca de três mil anos nos separam do mundo de Homero. Se o aedo canta em seus versos os feitos de dinastias lendárias da civilização minóico-micênica (1600-1100 a.C), a sociedade desenhada na Ilíada e na Odisseia, segundo Pierre Vidal-Naquet, lembra um período pouco mais recente, uma Grécia arcaica tribal fundada sobre os escombros dos palácios de Argos. Fixados no século VIII a.C. pelo(s) narrador(es) que convencionamos chamar de Homero, os dois poemas revelam uma sociedade ainda muito distante da nossa. No entanto, desde então a história nos liga continuamente ao cerco de Ílion e ao relato do retorno de Ulisses à sua terra natal.

O que por séculos a fio chamou tanto a atenção dos letrados de diferentes origens não foi a vida centrada no oikos, a casa do chefe político e militar comunitário, que a historiografia tradicional ligou anacronicamente ao feudo europeu medieval, nem mesmo os saques e butins necessários para sua manutenção, mas sim as imagens grandiloqüentes dessas batalhas, os episódios de grande expressão moral, os dilemas e conflitos de figuras como Aquiles, dividido entre a honra ferida e a sede de vingança, enfim, o fundo mítico trabalhado pelo poeta. Diferentemente do contemporâneo Hesíodo, Homero não almejava fixar as lendas gregas originais, mas, através das referências marginais, que geralmente apresentam a filiação divina de seus heróis, toda uma vasta mitologia se revela além do ciclo heroico: os deuses olímpicos intervêm nos acontecimentos, inclusive para mudar o destino dos homens, e a geração titânica de monstros e deuses primordiais é evocada para explicar a origem das coisas ou lembrar a glória de Zeus. Dessa forma, os primeiros grandes poemas escritos da antiguidade clássica são também as primeiras fontes de temas e motivos para a literatura no Ocidente, bem como um objeto privilegiado, durante séculos, pela avaliação crítica erudita. Como aponta Ítalo Calvino, o clássico gera uma “nuvem de discursos sobre si”; no entanto, sempre repelida: talvez a melhor maneira de compreender Homero ainda hoje seja ler o próprio autor.

A posição de precursor torna seus poemas clássicos por excelência, fundadores da genealogia ficcional que nos acostumamos a identificar como tradição ocidental. Qualquer leitor pode, aliás, reconhecer facilmente o lugar do clássico, como afirma Calvino. Tal “vocação para o futuro”, nas palavras de Jacyntho Lins Brandão, trata-se mais de um constante diálogo do que da simples repetição. As tragédias da Grécia Clássica, por exemplo, desenvolveram episódios da guerra de Troia ou tornaram aqueles personagens seus protagonistas, como na Orestia de Ésquilo, iniciada com a morte do rei Agamêmnon por sua esposa Clitemnestra, como vingança pelo assassínio da filha Ifigênia, ofertada à deusa Artemis, na Ilíada, para findar a peste que se abatia sobre as tropas gregas. Já o poeta latino Virgílio tomou Homero como modelo – e repetiu mesmo algumas fórmulas, como a descida ao mundo subterrâneo dos mortos, a descrição de elementos importantes do enredo na imagem esculpida em um escudo, além das óbvias cenas de batalha –, visando, com a escritura de sua Eneida, a superação do mestre grego. Para um exemplo que nos é mais próximo, basta lembrar a obra épica de Camões, Os Lusíadas, que inaugurou a grande escrita em português vernáculo recorrendo ao modelo homérico e evocando elementos daquele ambiente em sua narrativa. Resumindo, Homero fixou um gênero literário adotado por escritores de épocas e locais diversos, a epopeia, quer dizer, o canto do herói, mas também forneceu (e fornece) material para outras formas de expressão literária, como a tragédia acima mencionada.


É, portanto, a história de apropriações e atualizações que nos aproxima tanto de Homero. Ora, se o estético também é histórico, ou seja, se a forma mantém uma relação direta com o contexto cultural em que vigora, a retomada sucessiva do clássico é o que o torna clássico. Isso não significa destituir a obra de valor formal, o que equivaleria fazer tábula rasa de todos os textos de uma mesma sociedade e época, mas compreender que o belo é historicamente construído e regulado. Franco Fortini afirma que os clássicos de qualquer cultura estão “vivos” à medida que também estão “mortos”, quer dizer, em que o abandono do texto pelas diversas “formas de energia antagonista” que eles puderam encarnar em momentos diferentes permite novas leituras e questionamentos, inserindo a obra em novos debates e a atualizando no imaginário das gerações sucessivas. As novas respostas, todavia, precisam levar em conta a trilha de interpretações desenhada. É por isso que os enredos homéricos ainda nos são tão atraentes, capazes de levar multidões às salas de cinema em adaptações fílmicas ou se revelam rica fonte para novas formas narrativas hoje tão difundidas pela comunicação de massa como as histórias em quadrinhos.


Homero, dessa forma, ainda nos toca, ainda é capaz de nos dizer muitas coisas, coisas que sequer estão em seus poemas, mas que se tornaram parte de sua leitura, graças a quase três milênios de relações com o autor. Ler Homero é, assim, a forma mais feliz de se inserir nessa linha complexa e descontínua e, ao mesmo tempo, compreender uma maneira de ver o mundo que ainda nos constitui.

Bibliografia consultada:

BRANDÃO, Jacyntho Lins. Primórdios do épico: a Ilíada. In: APPEL, Myrna Bier, GOETTEMS, Míriam Barcellos (orgs.). As formas do épico: da epopéia sânscrita à telenovela. Porto Alegre: Movimento, 1992, p. 40-82.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FRANCO, Fortini. Clássico. In: Enciclopédia Einaudi. Literatura-texto. Volume 17. Lisboa: Imprensa Nacional, 1989, p. 295-305.
HOMERO. Ilíada (tradução de Carlos Alberto Nunes). Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
HOMERO. Odisséia (tradução de Carlos Alberto Nunes). Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

domingo, 1 de agosto de 2010

A conquista do "País da Solidão"

Acaba de sair artigo em que examino o primeiro livro de Barbosa Lessa sobre a história do RS, em perspectiva também historiográfica (Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo), na revista Fênix (UFU). O texto do Barbosa Lessa historiador acabou ficando muito parecido com a historiografia tradicional, a qual tanto criticou enquanto folclorista. Como, na minha opinião, o trabalho do analista não pode apagar as incoerências de uma obra/autor, vale a leitura um pouco incomodada, mas objetiva, da contradição - talvez aparente, dado que, politicamente, o livro continua afirmando o modelo, atualizado, do gaúcho pampiano, "centauro da pampa".




A conquista do "País da Solidão": Luiz Carlos Barbosa Lessa e a invenção do Rio Grande do Sul


Ainda somos filhos do século XIX. Muito do que constitui a experiência sóciohistórica contemporânea conheceu o mundo a partir das primeiras fábricas capitalistas ocidentais. A expansão industrial não somente consolidou a nova forma de organização econômica baseada na acumulação de capital, mas trouxe consigo novos fenômenos sociais, como o movimento operário, a organização política em partidos e, sem muito tardar, a produção e o consumo de massa. O imperialismo, por sua vez, levou o modelo de vida ocidental para as elites coloniais dos quatro cantos do planeta. Foi nesse momento que outro artefato cultural e político ganhou vida: a nação. Nos acostumamos, desde então, a (nos) pensar em termos nacionais. As lutas e os conflitos, bem como os acordos e as alianças, passaram a girar não mais em torno das dinastias ou casas reais, mas dos estados nacionais. Construímos nossas literaturas buscando a “essência” de nossas nações ou, simplesmente, classificando-as segundo as bandeiras empunhadas por nossos chefes políticos. Em função da nação, remodelamos nossos passados. Desenhamos nossas histórias a partir de genealogias imemoriais que atestam sua antiguidade. Deixamos de ser castelhanos, borgonheses, pomeranos ou correntinos para nos tornarmos espanhóis, franceses, alemães ou argentinos. A pátria, terra de nossos pais, se tornou a grande mãe nação. Aqueles pedaços de chão cuja extensão ou o poderio militar não permitiram uma vida política independente integraram unidades maiores. Os grandes impérios, por sua vez, dividiram-se em nações menores e “politicamente viáveis” ou, ainda, foram separados em regiões administrativas – e culturais – mais próximas do cotidiano dos súditos agora transformados em povo. Nos tornamos, finalmente, castelhanos espanhóis, borgonheses franceses, pomeranos alemães, correntinos argentinos...

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Este texto analisará como a historiografia de Luiz Carlos Barbosa Lessa concebe gaúchos brasileiros. Devido às proporções de um artigo, abordarei em específico o livro Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo, publicado em 1984 como esforço de síntese sobre a história do Estado, em seus três primeiros séculos, identificando como o autor elabora discursivamente a identidade regional afirmando símbolos como “passado comum”, “ancestrais fundadores”, “paisagem e lugares de memória”, “panteão de heróis”, “folclore”, “hábitos” e “costumes”. Trata-se, em suma, de averiguar como a escrita da história é empregada pelo principal teórico do “movimento tradicionalista” para a “naturalização dos atributos associados ao gaúcho e ao Rio Grande do Sul”.

ZALLA, J. A conquista do "País da Solidão": Luiz Carlos Barbosa Lessa e a invenção do Rio Grande do Sul. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2010.


Texto na íntegra: http://migre.me/10UHB