sábado, 18 de fevereiro de 2012

As aventuras de Aré

Artigo
As aventuras de Aré no mundo de Blau Nunes: vozes indígenas na obra de Barbosa Lessa



Saiu há pouco, pela Revista Boitatá, do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, mais um artigo que explora a obra do escritor gaúcho Barbosa Lessa. Como o título indica, busquei não somente analisar o papel do indígena em sua literatura, mas avaliar a incorporação de uma literariedade de inspiração oral em seu texto escrito, a partir, principalmente, do livro Era de Aré, de 1991. Abaixo, transcrevo o resumo.

Segue o link de acesso à publicação: http://www.uel.br/revistas/boitata/volume-12-2011/B1205.pdf


Resumo:

A questão indígena é recorrente na obra do escritor Luiz Carlos Barbosa Lessa(1929-2002), tanto como objeto de reflexão quanto como fonte para a figuração literária. Neste trabalho, proponho uma avaliação dessa temática, o que inclui a análise intensiva do texto e sua inscrição no debate público mais amplo. O balanço da obra permite compreender a relação do autor com as culturas autóctones e mapear a emergência de discursos de adesão a demandas pela memória indígena. Nesse sentido, os pontos de inflexão aparecem marcados na narrativa, aproximada, principalmente no livro Era de Aré (1991), a uma literariedade tradicional de inspiração oral, como demonstra a comparação de seu texto com os chamados“livros da floresta”.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

História e memória da Revolução Farroupilha

Artigo

História e memória da Revolução Farroupilha: breve genealogia do mito




Esta semana foi publicado na Revista Brasileira de História artigo da Carla Menegat e meu sobre a construção discursiva do episódio farrapo como mito identitário no Rio Grande do Sul. A quem interessar, o texto está disponível na página da RBH no Scielo: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v31n62/a05v31n62.pdf


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lançamento: História das Ideias


Na próxima quinta-feira, às 14h, será lançada na Feira do Livro de Porto Alegre a obra História das Ideias: proposições, debates e perspectivas, editada pela EDUNISC (Santa Cruz do Sul). Trata-se de coletânea de artigos do GT de História das Ideias da ANPUH-RS, organizada pelos professores Carlos Henrique Armani, Marçal de Menezes Paredes e Hugo Arend. Além de trabalhos dos historiadores da equipe, o livro conta com artigos de convidados de instituições internacionais. Minha contribuição é uma adaptação da segunda seção do sexto capítulo de minha dissertação, que ganhou o longo (e auto-explicativo) título de "A estância de ponta-cabeça ou O discurso da memória na batalha dos sentidos: Barbosa Lessa e os debates identitários no Rio Grande do Sul dos anos 1980".

Segue a lista completa dos autores:

Carlos Henrique Armani (org)
Débora Regina Vogt
Elenita Malta Pereira
Elias José Palti
Hugo Arend (org)
Jocelito Zalla
Marçal de Menezes Paredes (org)
Mark Bevir
Mozart Linhares da Silva
Paul Montoya
Rossana Samarani Verran
Rui Cunha Martins



Dia 10 de novembro de 2011, às 14h
Memorial do Rio Grande do Sul

Feira do Livro de Porto Alegre


sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Como nos tornamos mito (resenha)

Resenha


Como nos tornamos mito: a historicização da identidade gaúcha por Carla Renata Gomes


Acaba de ser publicada, na revista Estudos Íbero-Americanos, da PUCRS, uma resenha que fiz do livro de Carla Renata Gomes sobre o processo que levou à positivação e "gentilização" da palavra "gaúcho" no Rio Grande do Sul (dados abaixo). Recomendo veementemente o trabalho da historiadora. Segue o trecho inicial de meu texto e o ink para a publicação.


"Publicado em 2009, o livro De Rio-Grandense a Gaúcho: o triunfo do avesso, de Carla Renata Antunes de Souza Gomes, nos conduz, com maestria, pela história da construção simbólica do habitante “típico” do estado, através da ressemantização (e confluência) de seus dois principais adjetivos gentílicos, operada pela literatura local. Seu texto é exemplar das novas tendências de abordagem analítica da identidade regional, bastante recentes e que renderam ainda poucos frutos na oficina de Clio.

A profissionalização dos estudos históricos universitários no Rio Grande do Sul, a partir do final dos anos 1970, não se deu sem a desejada ruptura com a erudição diletante tradicional. Ao negar os pressupostos teóricos e métodos de pesquisa de seus antecessores, comprometidos com a exaltação do objeto “região”, ou melhor, com sua elaboração cívica e ufanista, historiadores e críticos literários, principalmente, dotaram os estudos sobre a “ideologia do gauchismo” de uma tônica denunciatória: o gaúcho de lenço atado ao pescoço, botas e bombachas, anacronismo social revivido arbitrariamente nos palcos dos Centros de Tradições Gaúchas, fora uma falácia elaborada no entresséculo XIX-XX para legitimar a hegemonia das elites rurais decadentes. As ligações entre a política e a produção cultural locais não podem ser negligenciadas, mas o foco estreito do exame e o viés de acusação acabaram por criar um lugar-comum muito difícil de transpor. Nesse ínterim, uma série de disputas intelectuais, projetos de memória conflitantes, usos e funções diversas do gaúcho mítico, se perderam. Foi necessária cerca de uma década para que surgissem interpretações mais atentas, como aquelas de Ieda Gutfreind, sobre a historiografia tradicional, e a produção antropológica de Ruben Oliven e Maria Eunice Maciel. Na História, todavia, os passos de Gutfreind, seguidos por ensaios de Sandra Pesavento, só foram acompanhados, e ultrapassados, na virada do milênio, a partir das pesquisas de Letícia Borges Nedel, sobre o folclorismo e a erudição polígrafa nas décadas de 1940-1950, e de Alexandre Lazzari, sobre a sociedade Partenon Literário e a invenção da nação no século XIX.

O texto de Gomes deve ser compreendido dentro desse esforço recente de leitura cuidadosa do gauchismo, em suas diversas variantes e modalidades discursivas, que construíram a ideia de um Rio Grande gaúcho por excelência. A crítica histórica, evidentemente, tem potencial libertador, à medida que desnaturaliza o objeto e questiona a fatalidade da geografia simbólica com a qual somos interpelados desde que nascemos. No entanto, o grande compromisso da autora é com o rigor analítico, amparado em um elaborado arcabouço conceitual, no levantamento diligente das fontes e no exame acurado dos documentos. Em suma, uma relação séria e responsável com questões de nossa história cultural já tantas vezes colocadas, mas em muitas simplificadas grosseiramente".


Leia mais aqui: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/8103


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Afinal, o que é o gaúcho?

Texto de opinião publicado no jornal Zero Hora de ontem.

Afinal, o que é o gaúcho?

O monarca, de Nelson Jungbluth


Toda comemoração abre, ainda que involuntariamente, espaço para reflexão. Com as celebrações de setembro, é comum pensarmos sobre nossa história regional e a identidade coletiva nela fundada, por mais capciosa que a pergunta-título deste artigo possa se mostrar. Para o nosso tempo, diria que “gaúcho” se configura como um símbolo bastante polissêmico. De um lado, a imagem do cavaleiro pampiano é incontornável para se pensar o Rio Grande. De outro, ela evoca muito mais do que a idade de ouro campeira criada pela literatura regionalista e reforçada pela historiografia tradicional.

A adoção da palavra como adjetivo gentílico, quer dizer, título para todo indivíduo aqui nascido, com certeza dinamizou seu significado, uma vez que o nome teve que abarcar realidades bastante diversas, incluindo sujeitos sociais sem a menor intimidade com o mundo rural e/ou elementos alheios à história e à dinâmica fronteiriça. Até meados do século 19, por exemplo, seria impensável mesmo à elite latifundiária se reconhecer no termo gaúcho, então identificado ao indivíduo que vagava sem rumo nem paradeiro pelos campos platinos, por vezes bandido, visto sempre como pária social. No sentido inverso, o fenômeno de “gentilização” conferiu grande legitimidade aos mitos associados ao gaúcho histórico; dentre eles, o de ser fundador étnico e cultural único e comum a todos os habitantes do estado.

Parte considerável da responsabilidade pela positivação da palavra, além da criação desses mitos, deve ser creditada a anos de investimentos intelectuais, nada gratuitos, mas condizentes com necessidades sentidas em cada momento de nossa história. Assim, o gaúcho de Simões Lopes Neto falava de um espaço, a Metade Sul, que perdia paulatinamente sua hegemonia econômica no estado e para uma sociedade que se modernizava, lembrando o que ela não era mais. Já o de Cyro Martins lamentava as duras condições enfrentadas pelos homens e mulheres que, expulsos do campo, buscavam abrigo nas cidades. Da mesma forma, o gaúcho heroico da historiografia dos anos 1920 e 1930 dizia que tínhamos um papel importante a cumprir no cenário político nacional.

Mas o que pouco se fala é que a celebração do gaúcho nunca foi consensual. Muito menos sua definição. Durante todo o século 20, foi objeto de disputas e divergências. O próprio movimento tradicionalista, no final dos anos 1940, precisou discutir o que seria selecionado (e inventado) como “tradicional”: o homem simples do campo ou a elite de militares estancieiros que explorara o território em nome da coroa portuguesa. Sua grande inovação foi apelar, na atualização do gaúcho mítico, às várias possibilidades de memória pública desenhadas pelas gerações anteriores.

Essa gama de usos históricos do mito fornece, portanto, um repertório bastante amplo para nosso próprio tempo. Como qualquer movimento romântico, o gauchismo carrega em si algo de conservador, de resistência às mudanças. Mas cabe ressaltar que não foi exclusividade da direita política. Intelectuais comprometidos com o popular, incluindo alguns declaradamente socialistas, também puderam dele se valer. Isso tem desdobramentos atuais, quando as apropriações do gaúcho mítico não respeitam matizes políticas, se manifestando no lenço vermelho de Olívio Dutra ou no vestido de prenda de Yeda Crusius, por exemplo.

Se as feições do gaúcho continuam mudando, sua configuração continua esta: um símbolo elástico o suficiente para se adaptar a novos contextos; logo, também plural. Daí seu sucesso. Se isso é bom ou ruim, já é outra conversa.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A política do mito

A política do mito: debate e apropriação na elaboração do projeto tradicionalista gaúcho de Luiz Carlos Barbosa Lessa


Foi publicado, há pouco, novo artigo na revista Esboços, do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC. Nele, reúno e sintetizo alguns pontos desenvolvidos nos capítulos II e III de minha dissertação, através da exploração intensiva do texto O sentido e o valor do tradicionalismo, tese matriz do MTG, redigido e defendido por Barbosa Lessa no I Congresso Tradicionalista, em 1954.

Segue o link: http: www.periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/11523

Referência:
ZALLA, J. A política do mito: debate e apropriação na elaboração do projeto tradicionalista de Luiz Carlos Barbosa Lessa. Esboços (UFSC). Florianópolis, v. 17, n. 24, dez. 2010, p. 176-202.

domingo, 17 de julho de 2011

Por uma visão melhor da língua

O pequeno ensaio que publico abaixo foi redigido na condição de estudante de Letras. Mas, como não poderia deixar de ser, o historiador de debates e o professor se intrometem no texo. Por isso, e pela esperança de que haja nele algo que valha a pena ser compartilhado, o trago a este espaço.


Por uma visão melhor da língua



Já faz algum tempo que a distribuição, pelo Ministério da Educação, do livro Por uma Vida Melhor tem gerado intensos debates na mídia brasileira. Tudo porque um dos capítulos introdutórios da obra, voltada ao programa Educação para Jovens e Adultos (EJA), traz algumas considerações sobre a norma popular. Os trechos polêmicos circulam pela internet, alimentando reações positivas, principalmente por parte de especialistas em linguagem, e, em medida muito maior, negativas, ancoradas em argumentos conservadores bastante antigos, como veremos a seguir.

O pomo da discórdia se encontra na apresentação de regras de concordância nominal e verbal comuns na fala de parcela significativa de nossa população, como em “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” e “Nós pega o peixe”, exemplos citados pelos autores da obra.[1] De acordo com o tão criticado texto, em ambos, apesar de alguns elementos estarem no singular, quem ouve as frases sabe que há, respectivamente, nas mensagens, mais de um livro ou mais de uma pessoa envolvida na ação. Quem possui algum conhecimento básico em Linguística percebe na sentença uma verdade científica, facilmente verificada na realidade empírica. E mais, concorda que, como apresentado pelos autores, em contextos de comunicação popular, este tipo de enunciado é mais eficiente, dado que é mais facilmente reconhecido pela comunidade interpretativa que o recebe.

Gramática normativa tradicional x perspectiva linguística

Mas, se o fato lingüístico discutido no livro é simples e real, a que se deve, então, tamanha polêmica? A resposta parece óbvia: pesem décadas de desenvolvimento, a Linguística, enquanto disciplina científica, não atingiu público muito maior do que os meios acadêmicos especializados, pelo menos no Brasil. Como aponta Sirio Possenti, a revolução copernicana, que modificou o senso comum no tocante a dados aparentes sobre a realidade física, não possui paralelo em questões de linguagem.[2] Ao contrário, os parâmetros das gramáticas normativas tradicionais, em geral, continuam pautando a relação dos falantes com a sua língua, como fica claro pelo teor dos debates em torno do referido livro.

A força da tradição nomativista, que estabelece regras arbitrárias sobre o certo e o errado, baseadas em textos literários antigos, parece, assim, se impor frente à abordagem científica da língua. Certa tensão entre a perspectiva lingüística e a gramatical já se manifestava nos apontamentos de Ferdinand de Saussure, compilados em seu Curso de Linguística Geral, publicação póstuma de 1916: “A gramática tradicional ignora partes inteiras da língua como, por exemplo, a formação das palavras; é normativa e crê dever promulgar regras em vez de comprovar os fatos; falta-lhe visão de conjunto; amiúde, ela chega a não distinguir a palavra escrita da falada etc”.[3]

Vale ressaltar que a antiguidade de tal tensão precede, inclusive, a constituição da Linguística como disciplina. Como não lembrar os debates entre o escritor brasileiro José de Alencar e seus contemporâneos portugueses, e partidários locais da perspectiva lusitana, no século XIX? Enquanto estes recriminavam o uso de termos e expressões comuns na fala da elite culta de nosso país, não previstos nos compêndios gramaticais de além-mar, aquele defendia a modernização da linguagem literária. Claro que Alencar, apesar de seu reconhecido viés romântico, nunca propôs a inclusão, e conseqüente valorização, da linguagem popular na norma padrão. Muitos de seus argumentos, inclusive, recorriam ao peso da autoridade, verificando ocorrências de construções similares às suas nos clássicos da literatura. Mas, justiça seja feita, o escritor chegou a prescrever a pesquisa empírica da língua culta falada no Brasil, posição bastante avançada, levando em conta o campo de possibilidades de que dispunha e o ambiente pré-científico, no que concerne ao trato da língua, em que vivia.

Seguindo a análise do debate, e do momento, feita por Carlos Alberto Faraco, sabemos que o que se punha em discussão – como ainda parece ser nosso caso – tinha maior relação com as disputas ideológicas de então do que com a reflexão efetiva sobre a língua. A necessidade de caracterizar o Brasil como nação branca e europeia, única forma de escapar às suspeitas de barbárie que pesavam sobre o Novo Mundo, levou à vitória da “lusitanização” da norma, quer dizer, da adoção definitiva de princípios da unidade da língua e de escritores portugueses como modelo de correção, com o conseqüente cultivo da prática de identificar os “erros” cometidos pelos brasileiros.[4] Tudo se passa como se esse “vício de origem”, nos termos de Faraco, condicionasse nossa visão sobre a língua falada no país: “Esse quadro todo contribuiu significativamente para a construção não só de diretrizes para o ensino, mas principalmente para a disseminação e consolidação da atitude normativista (que ainda nos atormenta), combinando o purismo com a síndrome do erro”.[5]

A variação lingüística

Há, portanto, pelo menos desde o século XIX, presente nos debates sobre a(s) língua(s) nacional (is) a dicotomia entre o imobilismo das regras da gramática tradicional e o dinamismo, sincrônico e diacrônico, da língua viva. Se, seguindo Saussure, reconhecemos que o tempo altera todas as coisas, ainda mais necessário, no caso, é atinar para o fato de que a variação, num mesmo eixo temporal, também ocorre na língua, seguindo de perto as diferenças sociais, culturais, regionais e de geração, por exemplo, sem falar na própria distinção já mencionada entre escrita e oralidade.

No entanto, o engessamento da língua efetuado pela tradição normativista não somente esquece o fenômeno da variação, negando coerência e lógica gramatical às variantes desprestigiadas socialmente da língua portuguesa falada no Brasil, mas também mascara o aspecto arbitrário e político da norma padrão. Há que se pensar, assim, na função histórica assumida pela norma culta de estabelecer distinções sociais: o domínio do modelo tradicional de gramática sempre garantiu o acesso privilegiado, em um país com problemas crônicos de educação ainda não resolvidos, de membros da elite econômica e política a cargos públicos e empregos considerados “nobres”, como a direção de empresas privadas. Como num círculo vicioso, a norma padrão se distanciou, inclusive, das regras utilizadas pelas altas camadas da sociedade, daí o termo “norma cultuada” utilizado nos meios especializados para defini-la. [6] Sua utilização proficiente ficou ainda mais elitizada, alimentando o círculo e garantindo a posição dos “iluminados” pelo saber ortodoxo da língua. A idealização da norma culta, portanto, referendou, ao longo de gerações, o status quo.

O livro Por uma Vida Melhor tem como mérito não somente a desmistificação da norma padrão, mas também o reconhecimento da legitimidade das variedades lingüísticas. Como mostrado por Luiz Percival Leme de Britto, a questão que deve pautar o conhecimento cientificamente orientado da língua e da linguagem deve ir além da mera verificação da adequação dos modos de falar a situações específicas, mas reconhecer que

“a cada variedade lingüística corresponde uma gramática e diferentes níveis de registro e que, portanto, é somente no interior de cada variedade que a noção de correto pode se estabelecer, e sempre a partir da consideração da situação de interlocução efetiva, de modo que determinado tipo de registro pode ser adequado em dada circunstância e totalmente inadequado em outra”.[7]

O preconceito lingüístico e o papel da escola

Se o papel da escola é ensinar aquilo que seu público atendido não conhece, é verdade que o foco da aprendizagem deve ser, ainda que por maneiras heterodoxas, a norma culta (não, necessariamente, a “cultuada”) utilizada em nossa sociedade. Quer dizer, para garantir a democratização das oportunidades, é necessário que se estenda a toda a população o domínio da variante prestigiada. É o que defende, por exemplo, Sirio Possenti, em seu livro Por que (não) ensinar gramática na escola. Nesse sentido, todo o debate em torno da obra distribuída pelo MEC se mostra, no mínimo, desvirtuado, já que o que deveria ser discutido é o cumprimento do dever da escola, não a infidelidade dos autores à ortodoxia gramatical. Ou seja, se o livro didático não negligencia tal função, não há sentido para tanto barulho! No próprio excerto divulgado pela mídia, e defenestrado pelos puristas da vez, encontramos a seguinte recomendação dos autores: “Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades [norma culta e norma popular] e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala”.

Mas a função da escola não pode ser tão reduzida. Se se ensina aquilo que não se conhece, o fazemos pela compreensão, após muito acúmulo de discussão em educação, de que a razão de ser da escola se ancora em demandas muito mais profundas: trata-se de ver o ensino de forma ampla e humanista. Ou seja, não podemos tomar a escola apenas como o lugar do conhecimento técnico, mas enquanto espaço de transformação. Isso significa que o público atendido, seja o alunado em idade escolar ideal sejam jovens e adultos que não tiveram o direito à educação respeitado enquanto crianças, deve ser preparado para o exercício pleno da cidadania. Se queremos cidadãos criticamente instrumentalizados, é necessário romper com formas cristalizadas de enxergar o mundo, que, como vimos, no caso da língua e da linguagem, apenas legitimam o sistema de exclusão e marginalização que se reproduz há séculos no país.

Não devemos ideologizar o debate, mas politizá-lo, no sentido de refletir sobre as relações de poder que efetivamente existem na realidade concreta. No caso da língua, como em muitos outros, a melhor maneira de romper com o stablishment é desnudar, cientificamente, o objeto em litígio, sem julgamentos de valor, o que, de fato, se apresenta nas vozes já arcaicas da perspectiva gramatical tradicional. Romper com o preconceito lingüístico, quer dizer, com a visão que condena, de maneira arbitrária, formas legítimas de se comunicar, pelo simples fato de não ser a sua, ou de não ser aquela consagrada pelas classes altas, como quer Marcos Bagno, é tarefa de especialistas em linguagem e de todos que, de alguma forma, se comprometem com uma sociedade mais justa: “Onde não existe uma política lingüística bem-informada e esclarecida, a ignorância (ou a má-fé) se instala com tranqüilidade”.[8]

Talvez os autores, os editores e mesmo o MEC tenham sido ingênuos na forma como abordaram o problema, sem mensurar a possível reação. Mas o tamanho da polêmica e o nível do contra-ataque só reforçam a avaliação de que a iniciativa é válida e urgente.


[1] Conforme CIEGLINSKI, Amanda. Confira trechos do livro Por uma Vida Melhor que tratam da chamada “norma popular”. Publicado em 19/05/2011. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-19/confira-trechos-do-livro-por-uma-vida-melhor-que-tratam-da-chamada-%E2%80%9Cnorma-popular%E2%80%9D.

[2] POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 24ª reimpressão. Campinas: Mercado de Letras, 2010, pari passim.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27ª edição. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 98.

[4] FARACO, Carlos Alberto. A questão da língua: revisitando Alencar, Machado de Assis e cercanias. In:Línguas e instrumentos lingüísticos, n. 7, 2001, p. 43.

[5] Ibidem, p. 48.

[6][6] Ana Stahl Zilles utiliza o termo “língua culta” para designar a língua dos falantes cultos, como professores, médicos, engenheiros, jornalistas etc, em oposição ao termo “padrão”, que identifica a língua que sofreu processo de padronização técnica, “que inclui a confecção de dicionários, de gramáticas e a explicitação de normas, inclusive por órgãos como a Academia Brasileira de Letras, e de leis, como as diversas reformas ortográficas promovidas pelo governo”. ZILLES, Ana Maria Sthal. Algumas características do português do Brasil. In: GUEDES, Paulo Coimbra (org.). Ensino do português e cidadania. Porto Alegre: PMPA, SMED, p. 91.

[7] BRITTO, L. P. A sombra do caos: ensino da língua x tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 2002, p. 53.

[8][8] BAGNO, Marcos. Preconceito linguistico: o que é, como se faz. 52ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 24.