domingo, 28 de novembro de 2010

A figuração do desengano: Triste Fim de Policarpo Quaresma


Notas de leitura


Para tentar tornar a presença neste espaço mais assídua (por minha parte, claro, já que meus dois leitores andam ocupados com assuntos mais produtivos e, com certeza, divertidos), resolvi publicar textos mais curtos, mais ensaístícos (se isso for possível), quer dizer, menos articulados, com observações rápidas sobre minhas leituras atuais. Começo com Lima Barreto.



A figuração do desengano: Triste Fim de Policarpo Quaresma

Lima Barreto (1881-1922)


Em Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, Lima Barreto nos apresenta uma interessante jornada de herói, em que o triunfo do meio sobre os abnegados ideais nacionalistas do protagonista levam-no, ao mesmo tempo, à ruína e à redenção. Isso se tomarmos o ponto de vista do narrador como parâmetro de consciência desejável. Há, desde o início da trama, um descompasso entre a idealização do mundo operada pelas lentes patrióticas do Major Quaresma e as avaliações negativas do narrador sobre a sociedade brasileira, na cidade e no campo. Não obstante, o desenrolar do enredo conduz ambos os elementos a uma aproximação final: ao passo que o primeiro se digladia em novas (e não menos malsucedidas) frentes de batalha, conquista certa comiseração do segundo, cujas concessões, aliás, chegam a soar como lamento no desfecho da narrativa.

As três partes da obra recuperam uma seqüência de empreitadas algo quixotescas de Quaresma, as quais se não desencadeiam uma tomada efetiva de consciência, com a crítica de sua experiência, ao menos exigem a reavaliação das estratégias de ação. Com isso, o olhar do narrador oscila entre o ajuizamento manifesto, a descrição aparentemente distanciada, mas irônica e, como dito, certa empatia final. Ao longo do trajeto, o protagonista aparece como desajustado social – porque diferente de uma sociedade de fato desajustada –, variando entre o romantismo inocente, a utopia canhestra e a alienação social.
No primeiro momento, além da caracterização dos personagens e a localização espaço-temporal do entrecho (o Rio de Janeiro nos anos iniciais da I República), conhecemos a obsessão do protagonista pelas coisas locais, que se desdobra no inventário e celebração do que se supõe nacional, como a modinha e o violão, o folclore negro e, finalmente, após a asserção de que o “popular” no Brasil é fruto de tradições transplantadas, a cultura indígena. Os episódios da proposição de reviver o tupi e o embaraço causado, na repartição em que trabalhava, devido ao documento oficial redigido, por engano, nessa língua são o ápice da monomania do protagonista. A conseqüência na trama é reveladora da percepção do narrador sobre Quaresma, ao que parece, compartilhada pelos demais personagens: sua internação no hospício aponta para algo entre a loucura (de limites socialmente imprecisos no momento, vale lembrar) e o devaneio ingênuo, por isso mesmo de promissora cura.

A seguir, liberto do “cemitério de vivos”, o Major direciona suas energias para o cultivo da terra, numa localidade relativamente próxima da capital, querendo com isso coadunar sua existência à “vocação agrária” do país. Ao ser vencido pelo meio, geográfica e socialmente improdutivo, suas últimas esperanças de servir à pátria se depositam na defesa da república, durante a Revolta da Armada, que opusera a Marinha, politicamente conservadora, ao governo “jacobino” do Marechal Floriano Peixoto. Esse é o mote da última parte do livro. Mas um Quaresma demasiado humano, sensível aos anseios de comandados e, na sequência, às dores dos prisioneiros de guerra, entra em conflito com o autoritarismo do regime. Em sua última cartada, também bastante ingênua, condena o assassínio indiscriminado dos opositores já vencidos, o que lhe rende, ao que tudo indica, fim semelhante.

A paulatina confluência entre o ponto de vista do narrador e a trajetória do protagonista, marcada pelo niilismo assumido por Quaresma nas últimas páginas do romance, revela, assim, um processo narrativo complexo e, de certa forma, vacilante: a tônica realista, cuja descrição objetiva remete, como apontado por Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, a muito de crônica (ambientes e cenas cotidianas), cede, em alguns momentos, espaço à alegoria. Em última instância, os absurdos de Quaresma denotam os paradoxos da sociedade brasileira; os conflitos narrativos exacerbam aquelas questões que o narrador ou – por que não? – o autor acreditava problemáticas, como as tensões entre a ideologia positivista, e seu cientificismo autoritário, e o “atraso” da sociedade ainda em grande medida paternalista. Mas, como também quer Bosi, o grande trunfo do romance é justamente a exposição desse “desencontro” entre o “ideal” e o “real”, o que deixa indeléveis marcas na forma, ao mesmo tempo incômodas e saborosas.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O gaúcho como o outro

Passada a edição de publicação, segue na íntegra o texto "O gaúcho como o outro". Mas fica o convite para conhecer a revista Norte e ler o novo número: http://www.revistanorte.com.br/.





O gaúcho como o outro

A recente avaliação, durante a Copa do Mundo de Futebol, do ex-jogador, hoje médico e articulista esportivo, Sócrates sobre o conservadorismo supostamente gaúcho do ex-técnico da seleção brasileira Dunga, declarada em entrevista ao jornal britânico The Guardian, gerou intensos debates na mídia impressa local e na internet. Os protestos ultrapassaram a torcida da seleção, demonstrando desconforto entre setores diversos da sociedade sul-rio-grandense. Escritores, músicos e mesmo historiadores saíram em defesa do torrão natal, apelando para seu histórico de rebeldia ou justificando a diferença em relação ao todo nacional pela sua complexa composição cultural, fruto da ocupação tardia e etnicamente diversa. Alguns “nativos” chegaram mesmo a olhar o episódio com certa complacência, concordando (e lamentando) o atraso do contexto regional. Tal variedade de opiniões, por si só, já colocaria em cheque a unidade gaúcha, aclamada por habitantes, vale dizer, dos dois lados do Mampituba. Contudo, foi pouco comentado o deslize lógico da fala de Sócrates: os gaúchos são os brasileiros mais reacionários, o que daria o toque pessoal de Dunga à seleção, deixando-a, assim, sem cara de brasileira. A aparente contradição é bastante significativa, pois está solidamente assentada naquele imaginário nacional que aponta o gaúcho como seu “outro” interno.

Ao longo do século XIX, mesmo período em que começamos todos, do norte ao extremo sul do antigo império português na América, a nos imaginar como brasileiros, o gaúcho foi, no entanto, o outro do sul-rio-grandense. Nossa sociedade fronteiriça, construída entre o latifúndio e a guerra, duas formas de marcar a posição e os interesses lusitanos na região, negou os possíveis vínculos culturais com o inimigo castelhano. O gaucho, homem “de a cavalo” visto como bandido ou vagabundo que errava sem lei nem rei pela imensidão da pampa, só poderia ser, evidentemente, o elemento platino. Como mostrado pelo crítico Augusto Meyer (1957), a positivação da palavra “gaúcho” só se dera com a organização da estância e com sua identificação ao trabalhador rural, o peão. Mais recentemente, a historiadora Carla Renata Gomes (2009) revelou o importante papel da literatura de viagem e da ficção oitocentista na transformação do termo no gentílico do Rio Grande do Sul. Enquanto os escritores locais cantavam o campesino rio-grandense, “monarca das coxilhas” ou “centauro da pampa”, sem referência ao vocábulo, o olhar “desde fora” e o imaginário da corte, marcado pela escassa bibliografia sobre a região (proveniente principalmente da Argentina e do Uruguai), designavam, de forma suspeita, todos os habitantes da antiga província de São Pedro do Rio Grande do Sul pelo epíteto de gaúcho. Daí o título do romance clássico de José de Alencar, publicado em 1870, e que pressionou a produção local, imediatamente posterior àquela dos jovens republicanos da Sociedade Partenon Literário, a assumir tal alcunha para o sujeito folk que se pretendia narrar. Daí também as incoerências na forma e no enredo daquela obra do escritor cearense, centrada no elogio do gaúcho mítico, contudo marcada, em alguns momentos, pela crítica da barbárie pampiana.

Taxado pela revolta mais duradoura do período regencial, a Guerra dos Farrapos – que chegou, vejam bem, a declarar a independência política do restante do país –, pela proximidade com o inimigo platino, pela excêntrica imagem de civilização rural e militar, predominantemente masculina, como a lendária sociedade magiar, além de sua distância geográfica (e consequentemente simbólica) com o centro, o sul-rio-grandense continuou sendo, no início do século XX, o outro interno do Brasil, paradoxalmente identificado com o seu próprio outro/inimigo histórico, o castelhano. A capital Rio de Janeiro possuía, na Primeira República, considerável “colônia” de intelectuais e políticos oriundos do Rio Grande, como o reconhecido escritor regionalista Alcides Maya, membro da Academia Brasileira de Letras, que construía, em seus textos, um gaúcho mítico positivado segundo o modelo de Alencar. Como apontado pelo folclorista e historiador diletante Barbosa Lessa (1985), naquele contexto os rio-grandenses eram quase que naturalmente chamados gaúchos. Enquanto esses viam com bons olhos a “novidade” e aceitavam o apelido, tal situação causava resistência entre a elite urbana do estado, que negava o suposto passado gaudério, como nas queixas do escritor Arthur Toscano nas páginas do Almanak do Rio grande do Sul, de 1912. Tal fato tem relação, como vimos, com o sentido pejorativo original da palavra, mas também revela a necessidade então sentida de afirmar o rio-grandense como brasileiro.

Entretanto, a estratégia já não funcionaria sem recorrer ao estigma. Os eruditos do Instituto Histórico e Geográfico local (IHGRS), fundado em 1920, produziram, nesse sentido, uma memória histórica conciliadora: pese a divisão entre uma matriz historiográfica lusitana e outra platina, nos termos da historiadora Ieda Gutfreind (1992), com a negação ou a relativa aceitação de fluxos econômicos e sociais entre o Rio Grande e os países do Prata, o gaúcho social foi irremediavelmente incorporado ao patrimônio do estado. A solução do impasse estava novamente na oposição com o gaucho malo platino, distante do “nosso” gaúcho rio-grandense, construído como ordeiro, trabalhador e, surpreendentemente, social e racialmente democrático, dada a suposta indiferenciação entre o patrão e o peão na lida campeira e a ainda mais fabulosa boa vida do escravo na estância. Tal articulação permitiu, então, a constatação da brasilidade do gaúcho, esteio do país no sul do continente. A Revolução de 1930, que levou ao poder Getúlio Vargas e as elites periféricas descontentes com o pacto oligárquico tradicional, era justificada no estado (até pouco dividido entre a dissidente Aliança Libertadora de Assis Brasil e o PRR no poder de Borges de Medeiros) como o empenho de “rio-grandensizar” o Brasil, o que insinuava, ao mesmo tempo, a superioridade política do elemento sulino e sua vocação histórica para a defesa do país. A cena folclórica dos “gaúchos” amarrando seus cavalos no obelisco da Avenida Central, na capital federal, mais do que pilhéria, simbolicamente atestava a ligação entre a afastada região e o epicentro da sociedade brasileira. Ainda assim, as singularidades dos rio-grandenses/gaúchos não afastavam o olhar desconfiado do centro, fato que se desdobrava, durante as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha, na necessidade de redesenhá-la como uma revolta patriota, republicana e, ao invés de separatista, redentora, disposta a dar o sangue de seus filhos para sanar os males do império. Mais do que isso, a paz de Ponche Verde era vista como a adesão voluntária e consciente do estado à nação, por isso mesmo, mais sincera que a das demais unidades.

No final da década seguinte, os construtores do movimento tradicionalista gaúcho ainda sentiam o fardo das suspeitas: declarar o mito do gaúcho pampiano como base da identidade regional, inventando na cidade um complexo aparato ritual fundado no modelo idealizado do galpão da estância, também passava pela afirmação da brasilidade do “centauro”. Não bastasse o nascimento da primeira Ronda Crioula, em 1947, dar-se como continuação das comemorações da independência do Brasil, três anos depois o manifesto publicado no primeiro boletim informativo do “35” CTG evitava acusações de “ânimos separatistas” e declarava o patriotismo de seus integrantes. De lá para cá, o tradicionalismo gaúcho cresceu vertiginosamente, gerando tanto adesão quanto reação. Mas o papel do movimento na valorização do termo e sua disseminação como gentílico não pode ser negligenciada. Hoje, mesmo aqueles que negam (e combatem) o “modelo da bombacha” não deixam de se sentirem “gaúchos”, pelo simples fato de aqui nascerem ou terem crescido.

Se o estigma, como afirmou o sociólogo Erving Goffman (1988), é a afirmação de atributos considerados depreciativos, dentro de uma linguagem de relações, de uma “identidade social real” até a composição da “identidade social virtual”, o olhar estigmatizante do centro sobre a periferia, no caso do Rio Grande do Sul, operou inicialmente com aqueles elementos expurgados pelo próprio rio-grandense para o outro lado da fronteira nacional. A apropriação e a ressignificação de tais atributos levaram-nos, como mostrou o antropólogo Ruben Oliven (1992), a um constante paradoxo cultural: a assunção das especificidades da parte dentro do todo. De um lado, tal estratégia possibilitou a legitimação política do protagonismo gaúcho no cenário nacional e, inclusive, como apontado pela cientista política e historiadora Céli Pinto (1990), a exigência de atenção privilegiada da federação à unidade meridional, em supostos momentos de crise, dado que, segundo esse discurso, seu compromisso histórico com o país não obteve o justo retorno. De outro, ela acaba por reforçar (também internamente) o estigma, gerando anseios mais exacerbados de diferenciação, ufanismo e, para alguns, a justificativa da pretensa superioridade. A recepção desse emaranhado discursivo produzido no Rio Grande atualiza, de certa forma, o histórico imaginário de suspeitas do centro, o que se materializa, hoje, em falas como a de Sócrates: os gaúchos são brasileiros, não há dúvidas; mas de um tipo tão peculiar que chega a não ser “bem brasileiro”.

Assim, a escolha dos atributos que compõem o estereótipo também é atualizada: a suposta misoginia, o machismo, o apelo ao rural do gaúcho chegam ao reacionarismo; não importa se a mesma realidade tenha produzido historicamente elementos que poderiam ser facilmente utilizados para reverter as desconfianças, como o almejado cosmopolitismo da capital Porto Alegre, a concentração urbana da população e o tão aclamado, pelos defensores da “honra ferida”, histórico de rebeldia. No reverso da moeda, a exaltação de atributos também arbitrariamente selecionados nos leva à construção de mitos como a superioridade, a grande politização e mesmo aquele do “característico” esquerdismo do estado.

Se todos os elementos, em ambos os lados, se encontram aqui, também não seriam difíceis de achar em outros cantos do país. Os extremos acabam por apagar, discursivamente, a complexidade. As grandes abstrações “gaúcho” e “brasileiro”, ao operar via estereótipos, estigmatizados ou não, esquecem que o Rio Grande (ou São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco etc), como toda sociedade, é heterogêneo, marcado pela diferença, por tensões e conflitos, tanto ou mais do que pela solidariedade identitária.

Referências:

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1985, 120 p.

GOFFMAN, Irving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 1988, 158 p.

GOMES, Carla Renata de Souza. De rio-grandense a gaúcho: o triunfo do avesso - um processo de representação regional na literatura do século XIX (1847-1877). Porto Alegre: Editoras Associadas: 2009, 352 p.

GUTFREIND, Ieda. A historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992, 217 p.

MEYER, Augusto. Gaúcho: história de uma palavra. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1957, 71 p.

OLIVEN, Ruben. George. A parte e o todo: A Diversidade Cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992, 143 p.

PINTO, Celi Regina Jardim. O Discurso da Crise - uma presença constante na história gaúcha. In: Donaldo Shuller. (org.). Mito ontem e hoje. Porto Alegre: UFRGS, 1990, p. 12-28