domingo, 17 de julho de 2011

Por uma visão melhor da língua

O pequeno ensaio que publico abaixo foi redigido na condição de estudante de Letras. Mas, como não poderia deixar de ser, o historiador de debates e o professor se intrometem no texo. Por isso, e pela esperança de que haja nele algo que valha a pena ser compartilhado, o trago a este espaço.


Por uma visão melhor da língua



Já faz algum tempo que a distribuição, pelo Ministério da Educação, do livro Por uma Vida Melhor tem gerado intensos debates na mídia brasileira. Tudo porque um dos capítulos introdutórios da obra, voltada ao programa Educação para Jovens e Adultos (EJA), traz algumas considerações sobre a norma popular. Os trechos polêmicos circulam pela internet, alimentando reações positivas, principalmente por parte de especialistas em linguagem, e, em medida muito maior, negativas, ancoradas em argumentos conservadores bastante antigos, como veremos a seguir.

O pomo da discórdia se encontra na apresentação de regras de concordância nominal e verbal comuns na fala de parcela significativa de nossa população, como em “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” e “Nós pega o peixe”, exemplos citados pelos autores da obra.[1] De acordo com o tão criticado texto, em ambos, apesar de alguns elementos estarem no singular, quem ouve as frases sabe que há, respectivamente, nas mensagens, mais de um livro ou mais de uma pessoa envolvida na ação. Quem possui algum conhecimento básico em Linguística percebe na sentença uma verdade científica, facilmente verificada na realidade empírica. E mais, concorda que, como apresentado pelos autores, em contextos de comunicação popular, este tipo de enunciado é mais eficiente, dado que é mais facilmente reconhecido pela comunidade interpretativa que o recebe.

Gramática normativa tradicional x perspectiva linguística

Mas, se o fato lingüístico discutido no livro é simples e real, a que se deve, então, tamanha polêmica? A resposta parece óbvia: pesem décadas de desenvolvimento, a Linguística, enquanto disciplina científica, não atingiu público muito maior do que os meios acadêmicos especializados, pelo menos no Brasil. Como aponta Sirio Possenti, a revolução copernicana, que modificou o senso comum no tocante a dados aparentes sobre a realidade física, não possui paralelo em questões de linguagem.[2] Ao contrário, os parâmetros das gramáticas normativas tradicionais, em geral, continuam pautando a relação dos falantes com a sua língua, como fica claro pelo teor dos debates em torno do referido livro.

A força da tradição nomativista, que estabelece regras arbitrárias sobre o certo e o errado, baseadas em textos literários antigos, parece, assim, se impor frente à abordagem científica da língua. Certa tensão entre a perspectiva lingüística e a gramatical já se manifestava nos apontamentos de Ferdinand de Saussure, compilados em seu Curso de Linguística Geral, publicação póstuma de 1916: “A gramática tradicional ignora partes inteiras da língua como, por exemplo, a formação das palavras; é normativa e crê dever promulgar regras em vez de comprovar os fatos; falta-lhe visão de conjunto; amiúde, ela chega a não distinguir a palavra escrita da falada etc”.[3]

Vale ressaltar que a antiguidade de tal tensão precede, inclusive, a constituição da Linguística como disciplina. Como não lembrar os debates entre o escritor brasileiro José de Alencar e seus contemporâneos portugueses, e partidários locais da perspectiva lusitana, no século XIX? Enquanto estes recriminavam o uso de termos e expressões comuns na fala da elite culta de nosso país, não previstos nos compêndios gramaticais de além-mar, aquele defendia a modernização da linguagem literária. Claro que Alencar, apesar de seu reconhecido viés romântico, nunca propôs a inclusão, e conseqüente valorização, da linguagem popular na norma padrão. Muitos de seus argumentos, inclusive, recorriam ao peso da autoridade, verificando ocorrências de construções similares às suas nos clássicos da literatura. Mas, justiça seja feita, o escritor chegou a prescrever a pesquisa empírica da língua culta falada no Brasil, posição bastante avançada, levando em conta o campo de possibilidades de que dispunha e o ambiente pré-científico, no que concerne ao trato da língua, em que vivia.

Seguindo a análise do debate, e do momento, feita por Carlos Alberto Faraco, sabemos que o que se punha em discussão – como ainda parece ser nosso caso – tinha maior relação com as disputas ideológicas de então do que com a reflexão efetiva sobre a língua. A necessidade de caracterizar o Brasil como nação branca e europeia, única forma de escapar às suspeitas de barbárie que pesavam sobre o Novo Mundo, levou à vitória da “lusitanização” da norma, quer dizer, da adoção definitiva de princípios da unidade da língua e de escritores portugueses como modelo de correção, com o conseqüente cultivo da prática de identificar os “erros” cometidos pelos brasileiros.[4] Tudo se passa como se esse “vício de origem”, nos termos de Faraco, condicionasse nossa visão sobre a língua falada no país: “Esse quadro todo contribuiu significativamente para a construção não só de diretrizes para o ensino, mas principalmente para a disseminação e consolidação da atitude normativista (que ainda nos atormenta), combinando o purismo com a síndrome do erro”.[5]

A variação lingüística

Há, portanto, pelo menos desde o século XIX, presente nos debates sobre a(s) língua(s) nacional (is) a dicotomia entre o imobilismo das regras da gramática tradicional e o dinamismo, sincrônico e diacrônico, da língua viva. Se, seguindo Saussure, reconhecemos que o tempo altera todas as coisas, ainda mais necessário, no caso, é atinar para o fato de que a variação, num mesmo eixo temporal, também ocorre na língua, seguindo de perto as diferenças sociais, culturais, regionais e de geração, por exemplo, sem falar na própria distinção já mencionada entre escrita e oralidade.

No entanto, o engessamento da língua efetuado pela tradição normativista não somente esquece o fenômeno da variação, negando coerência e lógica gramatical às variantes desprestigiadas socialmente da língua portuguesa falada no Brasil, mas também mascara o aspecto arbitrário e político da norma padrão. Há que se pensar, assim, na função histórica assumida pela norma culta de estabelecer distinções sociais: o domínio do modelo tradicional de gramática sempre garantiu o acesso privilegiado, em um país com problemas crônicos de educação ainda não resolvidos, de membros da elite econômica e política a cargos públicos e empregos considerados “nobres”, como a direção de empresas privadas. Como num círculo vicioso, a norma padrão se distanciou, inclusive, das regras utilizadas pelas altas camadas da sociedade, daí o termo “norma cultuada” utilizado nos meios especializados para defini-la. [6] Sua utilização proficiente ficou ainda mais elitizada, alimentando o círculo e garantindo a posição dos “iluminados” pelo saber ortodoxo da língua. A idealização da norma culta, portanto, referendou, ao longo de gerações, o status quo.

O livro Por uma Vida Melhor tem como mérito não somente a desmistificação da norma padrão, mas também o reconhecimento da legitimidade das variedades lingüísticas. Como mostrado por Luiz Percival Leme de Britto, a questão que deve pautar o conhecimento cientificamente orientado da língua e da linguagem deve ir além da mera verificação da adequação dos modos de falar a situações específicas, mas reconhecer que

“a cada variedade lingüística corresponde uma gramática e diferentes níveis de registro e que, portanto, é somente no interior de cada variedade que a noção de correto pode se estabelecer, e sempre a partir da consideração da situação de interlocução efetiva, de modo que determinado tipo de registro pode ser adequado em dada circunstância e totalmente inadequado em outra”.[7]

O preconceito lingüístico e o papel da escola

Se o papel da escola é ensinar aquilo que seu público atendido não conhece, é verdade que o foco da aprendizagem deve ser, ainda que por maneiras heterodoxas, a norma culta (não, necessariamente, a “cultuada”) utilizada em nossa sociedade. Quer dizer, para garantir a democratização das oportunidades, é necessário que se estenda a toda a população o domínio da variante prestigiada. É o que defende, por exemplo, Sirio Possenti, em seu livro Por que (não) ensinar gramática na escola. Nesse sentido, todo o debate em torno da obra distribuída pelo MEC se mostra, no mínimo, desvirtuado, já que o que deveria ser discutido é o cumprimento do dever da escola, não a infidelidade dos autores à ortodoxia gramatical. Ou seja, se o livro didático não negligencia tal função, não há sentido para tanto barulho! No próprio excerto divulgado pela mídia, e defenestrado pelos puristas da vez, encontramos a seguinte recomendação dos autores: “Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades [norma culta e norma popular] e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala”.

Mas a função da escola não pode ser tão reduzida. Se se ensina aquilo que não se conhece, o fazemos pela compreensão, após muito acúmulo de discussão em educação, de que a razão de ser da escola se ancora em demandas muito mais profundas: trata-se de ver o ensino de forma ampla e humanista. Ou seja, não podemos tomar a escola apenas como o lugar do conhecimento técnico, mas enquanto espaço de transformação. Isso significa que o público atendido, seja o alunado em idade escolar ideal sejam jovens e adultos que não tiveram o direito à educação respeitado enquanto crianças, deve ser preparado para o exercício pleno da cidadania. Se queremos cidadãos criticamente instrumentalizados, é necessário romper com formas cristalizadas de enxergar o mundo, que, como vimos, no caso da língua e da linguagem, apenas legitimam o sistema de exclusão e marginalização que se reproduz há séculos no país.

Não devemos ideologizar o debate, mas politizá-lo, no sentido de refletir sobre as relações de poder que efetivamente existem na realidade concreta. No caso da língua, como em muitos outros, a melhor maneira de romper com o stablishment é desnudar, cientificamente, o objeto em litígio, sem julgamentos de valor, o que, de fato, se apresenta nas vozes já arcaicas da perspectiva gramatical tradicional. Romper com o preconceito lingüístico, quer dizer, com a visão que condena, de maneira arbitrária, formas legítimas de se comunicar, pelo simples fato de não ser a sua, ou de não ser aquela consagrada pelas classes altas, como quer Marcos Bagno, é tarefa de especialistas em linguagem e de todos que, de alguma forma, se comprometem com uma sociedade mais justa: “Onde não existe uma política lingüística bem-informada e esclarecida, a ignorância (ou a má-fé) se instala com tranqüilidade”.[8]

Talvez os autores, os editores e mesmo o MEC tenham sido ingênuos na forma como abordaram o problema, sem mensurar a possível reação. Mas o tamanho da polêmica e o nível do contra-ataque só reforçam a avaliação de que a iniciativa é válida e urgente.


[1] Conforme CIEGLINSKI, Amanda. Confira trechos do livro Por uma Vida Melhor que tratam da chamada “norma popular”. Publicado em 19/05/2011. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-19/confira-trechos-do-livro-por-uma-vida-melhor-que-tratam-da-chamada-%E2%80%9Cnorma-popular%E2%80%9D.

[2] POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 24ª reimpressão. Campinas: Mercado de Letras, 2010, pari passim.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27ª edição. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 98.

[4] FARACO, Carlos Alberto. A questão da língua: revisitando Alencar, Machado de Assis e cercanias. In:Línguas e instrumentos lingüísticos, n. 7, 2001, p. 43.

[5] Ibidem, p. 48.

[6][6] Ana Stahl Zilles utiliza o termo “língua culta” para designar a língua dos falantes cultos, como professores, médicos, engenheiros, jornalistas etc, em oposição ao termo “padrão”, que identifica a língua que sofreu processo de padronização técnica, “que inclui a confecção de dicionários, de gramáticas e a explicitação de normas, inclusive por órgãos como a Academia Brasileira de Letras, e de leis, como as diversas reformas ortográficas promovidas pelo governo”. ZILLES, Ana Maria Sthal. Algumas características do português do Brasil. In: GUEDES, Paulo Coimbra (org.). Ensino do português e cidadania. Porto Alegre: PMPA, SMED, p. 91.

[7] BRITTO, L. P. A sombra do caos: ensino da língua x tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 2002, p. 53.

[8][8] BAGNO, Marcos. Preconceito linguistico: o que é, como se faz. 52ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 24.


quinta-feira, 7 de julho de 2011

Projeto Amora

Desde o início do ano atuo como professor de História no Colégio de Aplicação da UFRGS. Na instituição, integro o Projeto Amora, voltado para a reestruturação curricular de quintas e sextas séries (a partir de 2012, sextos e sétimos anos). Um dos instrumentos de aprendizagem utilizados no segmento é a iniciação científica. Trata-se de espaço na carga horária em que cada professor orienta um grupo de pequenos investigadores. Os assuntos e problemas de pesquisa são escolhidos pelos alunos, de acordo com seus interesses, e o objetivo do trabalho é o desenvolvimento cognitivo, através de habilidades e competências como observação e reconstituição de dados, antecipação, comparação/contraposição, explicação e justificativa.

Convido a todos a visitar as páginas com os resultados das pesquisas de meus orientandos na primeira edição de projetos de 2011, através da wiki http://professorzalla.pbworks.com.

Segue, também, o endereço do Projeto Amora: https://paginas.ufrgs.br/projetoamora



domingo, 5 de junho de 2011

Debate: Sobre as poéticas do dizer - Pesquisas e reflexões em oralidade

EVENTO


Debate sobre livro discute as relações entre Literatura e História através da oralidade



O erudito e o popular se encontram na obra Sobre as poéticas do dizer - Pesquisas e reflexões em oralidade, da Editora Letra e Voz, que será objeto de debate no dia 15 de junho, quarta-feira, às 19h, na Palavraria Livraria e Café (Rua Vasco da Gama, 165). A atividade terá apresentação da Profa. Dr. Rita Terezinha Schmidt (Instituto de Letras – UFRGS) e contará com a presença de autores.

O livro reúne textos de 18 pesquisadores acadêmicos de diversas áreas, que discutem assuntos como os “causos” na literatura do pampa, o conto em Barbosa Lessa, a narrativa de Graciliano Ramos, e as histórias urbanas da Restinga e dos pescadores de Florianópolis, entre outros.

Os temas são analisados a partir de questões como a narrativa na Literatura e na História, a verdade e a verossimilhança, a cultura popular, o diálogo entre cultura oral e cultura letrada, a performance, a tradição, a memória e as identidades coletivas. Os trabalhos foram originariamente apresentados no Colóquio Literatura, História e Oralidade, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em maio de 2009.

Sobre as poéticas do dizer - Pesquisas e reflexões em oralidade é organizado pelos professores Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Jocelito Zalla e Luís Fernando Telles D’Ajello, que também participam da obra. A obra é dividida em quatro partes: escrita, oralidade e tradição; narrativas orais: performance e identidade; intelectuais e cultura popular; verdade e verossimilhança: possibilidades da narrativa oral.


Organizadores: Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Jocelito Zalla e Luís Fernando Telles D’Ajello

Autores: Adriana Elisabete Bayer, Alessandra Bittencourt Flach, Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Atilio Bergamini Junior, Clarice Gontarski Speranza, Cláudio Pereira Elmir, Eudes Fernando Leite, Felipe Grüne Ewald, Frederico Garcia Fernandes, Jocelito Zalla, Luciana Hartmann, Luis Fernando Telles D’Ajello, Marcus Vinicius de Freitas Rosa, Mauren Pavão Przybylski, Nola Patrícia Gamalho, Regina Zilberman, Silvana de Gaspari, Sônia Queiroz


Lista dos artigos (ordem de apresentação na publicação):
1 - Por uma poética da intervenção: Manifesto do eu-tu-nós - Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
2 - A poesia são-tomense: O gesto dos saberes vivenciais e a evidência de identidades singulares entre múltiplas vozes - Adriana Elisabete Bayer
3 - Práticas narrativas, oralidade e memória - Regina Zilberman
4 - Metamorfoses do conto oral, entre voz e letra - Sônia Queiroz
5 - Estruturas metanarrativas: Nos meandros da produção poética na voz de um narrador urbano - Felipe Grüne Ewald
6 - O que a literatura pampiana conta sobre "contar causos" - Luciana Hartmann
7 - O que pescador diz não é cultura? Uma leitura da vida e da experiência de um pescador na Barra da Lagoa, Florianópolis - Mauren Pavão Przybylski
8 - Oralidades: Os caminhos da pesquisa na produção do bairro Restinga, Porto Alegre - Nola Patrícia Gamalho
9 - Intelectuais em performance: Narrativas urbanas da Restinga - Alessandra Bittencourt Flach 10 - O erudito contador: Performance e oralidade no conto gauchesco de Barbosa Lessa, ‘O boi das aspas de ouro’ (1958) - Jocelito Zalla
11 - Os intelectuais, os "populares" e o rei Momo: Refletindo sobre relações sociais e dinâmica cultural nos carnavais de Porto Alegre - Marcus Vinicius de Freitas Rosa
12 - A ‘Divina Comédia’ e os reflexos da literatura judaica de tradição oral - Silvana de Gaspari
13 - Enredo e narrativa: Ideias a partir de Graciliano Ramos - Atilio Bergamini Junior
14 - O engano, a mentira e a verdade: Caminhos e descaminhos na história oral - Clarice Gontarski Speranza
15 - Desafios metodológicos da literatura de testemunho para o trabalho do historiador - Cláudio Pereira Elmir
16 - E as musas se riem: Problemas sobre a metaficcionalização da História - Frederico Garcia Fernandes e Eudes Fernando Leite
17 - Da linguagem, da memória, da verdade: Uma análisede conceitos envolvidos na construção social da realidade - Luis Fernando Telles D’Ajello


Editora: Letra e Voz (http://www.letraevoz.com.br/)
Número de páginas: 200


O quê: Debate sobre o livro Sobre as poéticas do dizer - Pesquisas e reflexões em oralidade
Onde: Palavraria Livraria e Café (Rua Vasco da Gama, 165, Porto Alegre)
Quando: Quarta-feira, 15 de junho, às 19h


Jornalista responsável:
Clarice Speranza


sábado, 21 de maio de 2011

O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto

Capa de uma das edições do livro O gaúcho, de José de Alencar




Acaba de ser publicado, na revista Nau Literária, o artigo O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto: "romantismo político" à brasileira? Nele, procuro ler historicamente a obra O gaúcho (1870), a fim de identificar, através da composição formal, índices políticos legados à tradição literária regionalista do Rio Grande do Sul, como a crítica ao progresso, a nostalgia do tempo perdido, a construção do "bom selvagem" pampiano e a projeção romântica de futuro baseada no passado mítico. Segue o link:

http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/16084

domingo, 28 de novembro de 2010

A figuração do desengano: Triste Fim de Policarpo Quaresma


Notas de leitura


Para tentar tornar a presença neste espaço mais assídua (por minha parte, claro, já que meus dois leitores andam ocupados com assuntos mais produtivos e, com certeza, divertidos), resolvi publicar textos mais curtos, mais ensaístícos (se isso for possível), quer dizer, menos articulados, com observações rápidas sobre minhas leituras atuais. Começo com Lima Barreto.



A figuração do desengano: Triste Fim de Policarpo Quaresma

Lima Barreto (1881-1922)


Em Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, Lima Barreto nos apresenta uma interessante jornada de herói, em que o triunfo do meio sobre os abnegados ideais nacionalistas do protagonista levam-no, ao mesmo tempo, à ruína e à redenção. Isso se tomarmos o ponto de vista do narrador como parâmetro de consciência desejável. Há, desde o início da trama, um descompasso entre a idealização do mundo operada pelas lentes patrióticas do Major Quaresma e as avaliações negativas do narrador sobre a sociedade brasileira, na cidade e no campo. Não obstante, o desenrolar do enredo conduz ambos os elementos a uma aproximação final: ao passo que o primeiro se digladia em novas (e não menos malsucedidas) frentes de batalha, conquista certa comiseração do segundo, cujas concessões, aliás, chegam a soar como lamento no desfecho da narrativa.

As três partes da obra recuperam uma seqüência de empreitadas algo quixotescas de Quaresma, as quais se não desencadeiam uma tomada efetiva de consciência, com a crítica de sua experiência, ao menos exigem a reavaliação das estratégias de ação. Com isso, o olhar do narrador oscila entre o ajuizamento manifesto, a descrição aparentemente distanciada, mas irônica e, como dito, certa empatia final. Ao longo do trajeto, o protagonista aparece como desajustado social – porque diferente de uma sociedade de fato desajustada –, variando entre o romantismo inocente, a utopia canhestra e a alienação social.
No primeiro momento, além da caracterização dos personagens e a localização espaço-temporal do entrecho (o Rio de Janeiro nos anos iniciais da I República), conhecemos a obsessão do protagonista pelas coisas locais, que se desdobra no inventário e celebração do que se supõe nacional, como a modinha e o violão, o folclore negro e, finalmente, após a asserção de que o “popular” no Brasil é fruto de tradições transplantadas, a cultura indígena. Os episódios da proposição de reviver o tupi e o embaraço causado, na repartição em que trabalhava, devido ao documento oficial redigido, por engano, nessa língua são o ápice da monomania do protagonista. A conseqüência na trama é reveladora da percepção do narrador sobre Quaresma, ao que parece, compartilhada pelos demais personagens: sua internação no hospício aponta para algo entre a loucura (de limites socialmente imprecisos no momento, vale lembrar) e o devaneio ingênuo, por isso mesmo de promissora cura.

A seguir, liberto do “cemitério de vivos”, o Major direciona suas energias para o cultivo da terra, numa localidade relativamente próxima da capital, querendo com isso coadunar sua existência à “vocação agrária” do país. Ao ser vencido pelo meio, geográfica e socialmente improdutivo, suas últimas esperanças de servir à pátria se depositam na defesa da república, durante a Revolta da Armada, que opusera a Marinha, politicamente conservadora, ao governo “jacobino” do Marechal Floriano Peixoto. Esse é o mote da última parte do livro. Mas um Quaresma demasiado humano, sensível aos anseios de comandados e, na sequência, às dores dos prisioneiros de guerra, entra em conflito com o autoritarismo do regime. Em sua última cartada, também bastante ingênua, condena o assassínio indiscriminado dos opositores já vencidos, o que lhe rende, ao que tudo indica, fim semelhante.

A paulatina confluência entre o ponto de vista do narrador e a trajetória do protagonista, marcada pelo niilismo assumido por Quaresma nas últimas páginas do romance, revela, assim, um processo narrativo complexo e, de certa forma, vacilante: a tônica realista, cuja descrição objetiva remete, como apontado por Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, a muito de crônica (ambientes e cenas cotidianas), cede, em alguns momentos, espaço à alegoria. Em última instância, os absurdos de Quaresma denotam os paradoxos da sociedade brasileira; os conflitos narrativos exacerbam aquelas questões que o narrador ou – por que não? – o autor acreditava problemáticas, como as tensões entre a ideologia positivista, e seu cientificismo autoritário, e o “atraso” da sociedade ainda em grande medida paternalista. Mas, como também quer Bosi, o grande trunfo do romance é justamente a exposição desse “desencontro” entre o “ideal” e o “real”, o que deixa indeléveis marcas na forma, ao mesmo tempo incômodas e saborosas.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O gaúcho como o outro

Passada a edição de publicação, segue na íntegra o texto "O gaúcho como o outro". Mas fica o convite para conhecer a revista Norte e ler o novo número: http://www.revistanorte.com.br/.





O gaúcho como o outro

A recente avaliação, durante a Copa do Mundo de Futebol, do ex-jogador, hoje médico e articulista esportivo, Sócrates sobre o conservadorismo supostamente gaúcho do ex-técnico da seleção brasileira Dunga, declarada em entrevista ao jornal britânico The Guardian, gerou intensos debates na mídia impressa local e na internet. Os protestos ultrapassaram a torcida da seleção, demonstrando desconforto entre setores diversos da sociedade sul-rio-grandense. Escritores, músicos e mesmo historiadores saíram em defesa do torrão natal, apelando para seu histórico de rebeldia ou justificando a diferença em relação ao todo nacional pela sua complexa composição cultural, fruto da ocupação tardia e etnicamente diversa. Alguns “nativos” chegaram mesmo a olhar o episódio com certa complacência, concordando (e lamentando) o atraso do contexto regional. Tal variedade de opiniões, por si só, já colocaria em cheque a unidade gaúcha, aclamada por habitantes, vale dizer, dos dois lados do Mampituba. Contudo, foi pouco comentado o deslize lógico da fala de Sócrates: os gaúchos são os brasileiros mais reacionários, o que daria o toque pessoal de Dunga à seleção, deixando-a, assim, sem cara de brasileira. A aparente contradição é bastante significativa, pois está solidamente assentada naquele imaginário nacional que aponta o gaúcho como seu “outro” interno.

Ao longo do século XIX, mesmo período em que começamos todos, do norte ao extremo sul do antigo império português na América, a nos imaginar como brasileiros, o gaúcho foi, no entanto, o outro do sul-rio-grandense. Nossa sociedade fronteiriça, construída entre o latifúndio e a guerra, duas formas de marcar a posição e os interesses lusitanos na região, negou os possíveis vínculos culturais com o inimigo castelhano. O gaucho, homem “de a cavalo” visto como bandido ou vagabundo que errava sem lei nem rei pela imensidão da pampa, só poderia ser, evidentemente, o elemento platino. Como mostrado pelo crítico Augusto Meyer (1957), a positivação da palavra “gaúcho” só se dera com a organização da estância e com sua identificação ao trabalhador rural, o peão. Mais recentemente, a historiadora Carla Renata Gomes (2009) revelou o importante papel da literatura de viagem e da ficção oitocentista na transformação do termo no gentílico do Rio Grande do Sul. Enquanto os escritores locais cantavam o campesino rio-grandense, “monarca das coxilhas” ou “centauro da pampa”, sem referência ao vocábulo, o olhar “desde fora” e o imaginário da corte, marcado pela escassa bibliografia sobre a região (proveniente principalmente da Argentina e do Uruguai), designavam, de forma suspeita, todos os habitantes da antiga província de São Pedro do Rio Grande do Sul pelo epíteto de gaúcho. Daí o título do romance clássico de José de Alencar, publicado em 1870, e que pressionou a produção local, imediatamente posterior àquela dos jovens republicanos da Sociedade Partenon Literário, a assumir tal alcunha para o sujeito folk que se pretendia narrar. Daí também as incoerências na forma e no enredo daquela obra do escritor cearense, centrada no elogio do gaúcho mítico, contudo marcada, em alguns momentos, pela crítica da barbárie pampiana.

Taxado pela revolta mais duradoura do período regencial, a Guerra dos Farrapos – que chegou, vejam bem, a declarar a independência política do restante do país –, pela proximidade com o inimigo platino, pela excêntrica imagem de civilização rural e militar, predominantemente masculina, como a lendária sociedade magiar, além de sua distância geográfica (e consequentemente simbólica) com o centro, o sul-rio-grandense continuou sendo, no início do século XX, o outro interno do Brasil, paradoxalmente identificado com o seu próprio outro/inimigo histórico, o castelhano. A capital Rio de Janeiro possuía, na Primeira República, considerável “colônia” de intelectuais e políticos oriundos do Rio Grande, como o reconhecido escritor regionalista Alcides Maya, membro da Academia Brasileira de Letras, que construía, em seus textos, um gaúcho mítico positivado segundo o modelo de Alencar. Como apontado pelo folclorista e historiador diletante Barbosa Lessa (1985), naquele contexto os rio-grandenses eram quase que naturalmente chamados gaúchos. Enquanto esses viam com bons olhos a “novidade” e aceitavam o apelido, tal situação causava resistência entre a elite urbana do estado, que negava o suposto passado gaudério, como nas queixas do escritor Arthur Toscano nas páginas do Almanak do Rio grande do Sul, de 1912. Tal fato tem relação, como vimos, com o sentido pejorativo original da palavra, mas também revela a necessidade então sentida de afirmar o rio-grandense como brasileiro.

Entretanto, a estratégia já não funcionaria sem recorrer ao estigma. Os eruditos do Instituto Histórico e Geográfico local (IHGRS), fundado em 1920, produziram, nesse sentido, uma memória histórica conciliadora: pese a divisão entre uma matriz historiográfica lusitana e outra platina, nos termos da historiadora Ieda Gutfreind (1992), com a negação ou a relativa aceitação de fluxos econômicos e sociais entre o Rio Grande e os países do Prata, o gaúcho social foi irremediavelmente incorporado ao patrimônio do estado. A solução do impasse estava novamente na oposição com o gaucho malo platino, distante do “nosso” gaúcho rio-grandense, construído como ordeiro, trabalhador e, surpreendentemente, social e racialmente democrático, dada a suposta indiferenciação entre o patrão e o peão na lida campeira e a ainda mais fabulosa boa vida do escravo na estância. Tal articulação permitiu, então, a constatação da brasilidade do gaúcho, esteio do país no sul do continente. A Revolução de 1930, que levou ao poder Getúlio Vargas e as elites periféricas descontentes com o pacto oligárquico tradicional, era justificada no estado (até pouco dividido entre a dissidente Aliança Libertadora de Assis Brasil e o PRR no poder de Borges de Medeiros) como o empenho de “rio-grandensizar” o Brasil, o que insinuava, ao mesmo tempo, a superioridade política do elemento sulino e sua vocação histórica para a defesa do país. A cena folclórica dos “gaúchos” amarrando seus cavalos no obelisco da Avenida Central, na capital federal, mais do que pilhéria, simbolicamente atestava a ligação entre a afastada região e o epicentro da sociedade brasileira. Ainda assim, as singularidades dos rio-grandenses/gaúchos não afastavam o olhar desconfiado do centro, fato que se desdobrava, durante as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha, na necessidade de redesenhá-la como uma revolta patriota, republicana e, ao invés de separatista, redentora, disposta a dar o sangue de seus filhos para sanar os males do império. Mais do que isso, a paz de Ponche Verde era vista como a adesão voluntária e consciente do estado à nação, por isso mesmo, mais sincera que a das demais unidades.

No final da década seguinte, os construtores do movimento tradicionalista gaúcho ainda sentiam o fardo das suspeitas: declarar o mito do gaúcho pampiano como base da identidade regional, inventando na cidade um complexo aparato ritual fundado no modelo idealizado do galpão da estância, também passava pela afirmação da brasilidade do “centauro”. Não bastasse o nascimento da primeira Ronda Crioula, em 1947, dar-se como continuação das comemorações da independência do Brasil, três anos depois o manifesto publicado no primeiro boletim informativo do “35” CTG evitava acusações de “ânimos separatistas” e declarava o patriotismo de seus integrantes. De lá para cá, o tradicionalismo gaúcho cresceu vertiginosamente, gerando tanto adesão quanto reação. Mas o papel do movimento na valorização do termo e sua disseminação como gentílico não pode ser negligenciada. Hoje, mesmo aqueles que negam (e combatem) o “modelo da bombacha” não deixam de se sentirem “gaúchos”, pelo simples fato de aqui nascerem ou terem crescido.

Se o estigma, como afirmou o sociólogo Erving Goffman (1988), é a afirmação de atributos considerados depreciativos, dentro de uma linguagem de relações, de uma “identidade social real” até a composição da “identidade social virtual”, o olhar estigmatizante do centro sobre a periferia, no caso do Rio Grande do Sul, operou inicialmente com aqueles elementos expurgados pelo próprio rio-grandense para o outro lado da fronteira nacional. A apropriação e a ressignificação de tais atributos levaram-nos, como mostrou o antropólogo Ruben Oliven (1992), a um constante paradoxo cultural: a assunção das especificidades da parte dentro do todo. De um lado, tal estratégia possibilitou a legitimação política do protagonismo gaúcho no cenário nacional e, inclusive, como apontado pela cientista política e historiadora Céli Pinto (1990), a exigência de atenção privilegiada da federação à unidade meridional, em supostos momentos de crise, dado que, segundo esse discurso, seu compromisso histórico com o país não obteve o justo retorno. De outro, ela acaba por reforçar (também internamente) o estigma, gerando anseios mais exacerbados de diferenciação, ufanismo e, para alguns, a justificativa da pretensa superioridade. A recepção desse emaranhado discursivo produzido no Rio Grande atualiza, de certa forma, o histórico imaginário de suspeitas do centro, o que se materializa, hoje, em falas como a de Sócrates: os gaúchos são brasileiros, não há dúvidas; mas de um tipo tão peculiar que chega a não ser “bem brasileiro”.

Assim, a escolha dos atributos que compõem o estereótipo também é atualizada: a suposta misoginia, o machismo, o apelo ao rural do gaúcho chegam ao reacionarismo; não importa se a mesma realidade tenha produzido historicamente elementos que poderiam ser facilmente utilizados para reverter as desconfianças, como o almejado cosmopolitismo da capital Porto Alegre, a concentração urbana da população e o tão aclamado, pelos defensores da “honra ferida”, histórico de rebeldia. No reverso da moeda, a exaltação de atributos também arbitrariamente selecionados nos leva à construção de mitos como a superioridade, a grande politização e mesmo aquele do “característico” esquerdismo do estado.

Se todos os elementos, em ambos os lados, se encontram aqui, também não seriam difíceis de achar em outros cantos do país. Os extremos acabam por apagar, discursivamente, a complexidade. As grandes abstrações “gaúcho” e “brasileiro”, ao operar via estereótipos, estigmatizados ou não, esquecem que o Rio Grande (ou São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco etc), como toda sociedade, é heterogêneo, marcado pela diferença, por tensões e conflitos, tanto ou mais do que pela solidariedade identitária.

Referências:

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1985, 120 p.

GOFFMAN, Irving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 1988, 158 p.

GOMES, Carla Renata de Souza. De rio-grandense a gaúcho: o triunfo do avesso - um processo de representação regional na literatura do século XIX (1847-1877). Porto Alegre: Editoras Associadas: 2009, 352 p.

GUTFREIND, Ieda. A historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992, 217 p.

MEYER, Augusto. Gaúcho: história de uma palavra. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1957, 71 p.

OLIVEN, Ruben. George. A parte e o todo: A Diversidade Cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992, 143 p.

PINTO, Celi Regina Jardim. O Discurso da Crise - uma presença constante na história gaúcha. In: Donaldo Shuller. (org.). Mito ontem e hoje. Porto Alegre: UFRGS, 1990, p. 12-28

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Gauchismo e política

Artigo de opinião publicado no jornal Zero Hora, de 15 de setembro, sobre a cofluência entre a Semana Farroupilha e a disputa eleitoral.


Gauchismo e política


Pensar as relações do gauchismo com a política no Rio Grande do Sul nos leva à sua gênese como discurso literário no século 19. A “era das nações”, em que a soberania deslocou-se do reino dinástico, de legitimação divina, para o “povo”, precisou, evidentemente, circunscrever as características e os limites do nacional e, por conseqüência, do popular. O gaúcho, herdeiro do “monarca das coxilhas” e do “centauro da pampa”, se tornou objeto de investimento de nossos intelectuais – locais e cortesãos, vale dizer –, comprometidos com a criação de imagens de um Brasil diverso, mas unificado. Nacionalista, o modelo do centauro era também romântico. Como tal, foi marcado pela crítica do progresso capitalista, responsável pela desarticulação da organização rural tradicional. Essa dupla formatação foi recuperada e atualizada pela ficção, pelo jornalismo, pela historiografia e pelo movimento tradicionalista, no século 20, com intenções, direta ou indiretamente, também políticas: a asserção das peculiaridades – e, para alguns, da superioridade – do regional.

Ao mesmo tempo em que o mito literário se difundiu em nossa sociedade, ganhando novas dimensões, a fórmula da bombacha, do lenço atado ao pescoço, do cavalo e, muito recentemente, da prenda na “garupa”, se tornou suficientemente cristalizada a ponto de definir a solidariedade identitária sul-rio-grandense. Por mais que ela esteja longe de ser consensual, seu apelo no imaginário local é inegável. Basta lembrarmos sua grande ressonância mesmo em antigas colônias de imigração alemã e italiana, interpretada por nossos antropólogos justamente como uma tentativa de afirmação social pela incorporação do discurso dominante no contexto luso-brasileiro. Não menos difícil é encontrar cidadãos sem o menor vínculo com o campo, sequer aqueles laços simbólicos proporcionados pela adesão ao tradicionalismo, que reconhecem neste modelo ideais tidos como próprios de todo habitante do estado: cito, para ficarmos no domínio do óbvio, o gosto pela distância e pelo torrão natal, traduzidos na defesa da liberdade e na contestação do centralismo opressor.
Com contornos políticos dessa maneira desenhados e com o grande alcance do gauchismo em todo o estado, fica fácil entender a atração ainda hoje exercida por ele sobre a classe política local. Nas vésperas de eleições regionais e nacionais, vemos candidatos dos mais variados matizes fazendo, em maior ou menor medida, reverência direta ao mito ou aos signos identificados com o gaúcho/nativo. Nos últimos dias, com a suspensão ritual de nossa sociedade para a celebração do gaúcho mítico, durante a Semana Farroupilha – atividade de Estado, vale ressaltar –, seu apelo se intensifica manifestamente. Pensar sua história e sua configuração é importante para lembrarmos que, como outrora, por trás dos lenços brancos e vermelhos existem concepções e ideias que fundamentam ou legitimam projetos políticos inclusive divergentes.

Se, de um lado, a plasticidade que permite sua utilização tanto pela direita quanto pela esquerda é sintoma da pluralização recente de seus sentidos, fruto da entrada dos antigos críticos da ideologia gaúcha na disputa pela definição do mito, o que talvez seja benéfico para o debate democrático, de outro, o eleitor responsável não pode perder de vista a complexidade do jogo político em função da afetividade declarada pelo modelo da bombacha. Se hoje, como ontem, o centauro responde a interesses específicos, ainda que mais variados, sua força continua centrada em seu potencial de homogeneização e, portanto, de simplificação. A escolha consciente, dessa forma, não pode ser pautada por um simples brado de amor ao Rio Grande, mas pela avaliação sistemática da trajetória, das ações e dos projetos, ou seja, dos compromissos assumidos pelos partidos e candidatos. Perguntar “por que este discurso?” mostra que outra indagação já bastante recomendada – “a quem ele serve?” – continua pertinente.
ZALLA, J. Gauchismo e política. Zero Hora. Porto Alegre, 15/09/2010, p. 23.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O gaúcho como o outro

Artigo publicado no n. 15 da revista Norte, de Porto Alegre. Segue abaixo pequeno trecho.



O gaúcho como o outro

A recente avaliação, durante a Copa do Mundo de Futebol, do ex-jogador, hoje médico e articulista esportivo, Sócrates sobre o conservadorismo supostamente gaúcho do ex-técnico da seleção brasileira Dunga, declarada em entrevista ao jornal britânico The Guardian, gerou intensos debates na mídia impressa local e na internet. Os protestos ultrapassaram a torcida da seleção, demonstrando desconforto entre setores diversos da sociedade sul-rio-grandense. Escritores, músicos e mesmo historiadores saíram em defesa do torrão natal, apelando para seu histórico de rebeldia ou justificando a diferença em relação ao todo nacional pela sua complexa composição cultural, fruto da ocupação tardia e etnicamente diversa. Alguns “nativos” chegaram mesmo a olhar o episódio com certa complacência, concordando (e lamentando) o atraso do contexto regional. Tal variedade de opiniões, por si só, já colocaria em cheque a unidade gaúcha, aclamada por habitantes, vale dizer, dos dois lados do Mampituba. Contudo, foi pouco comentado o deslize lógico da fala de Sócrates: os gaúchos são os brasileiros mais reacionários, o que daria o toque pessoal de Dunga à seleção, deixando-a, assim, sem cara de brasileira. A aparente contradição é bastante significativa, pois está solidamente assentada naquele imaginário nacional que aponta o gaúcho como seu “outro” interno.



Texto completo em: www.revistanorte.com.br

ZALLA, J. O gaúcho como o outro. Norte. Porto Alegre, agosto/setembro de 2010, p. 20-22.

domingo, 22 de agosto de 2010

Por que (ainda) ler Homero

Por que (ainda) ler Homero



Homero e seu guia, de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)

Cerca de três mil anos nos separam do mundo de Homero. Se o aedo canta em seus versos os feitos de dinastias lendárias da civilização minóico-micênica (1600-1100 a.C), a sociedade desenhada na Ilíada e na Odisseia, segundo Pierre Vidal-Naquet, lembra um período pouco mais recente, uma Grécia arcaica tribal fundada sobre os escombros dos palácios de Argos. Fixados no século VIII a.C. pelo(s) narrador(es) que convencionamos chamar de Homero, os dois poemas revelam uma sociedade ainda muito distante da nossa. No entanto, desde então a história nos liga continuamente ao cerco de Ílion e ao relato do retorno de Ulisses à sua terra natal.

O que por séculos a fio chamou tanto a atenção dos letrados de diferentes origens não foi a vida centrada no oikos, a casa do chefe político e militar comunitário, que a historiografia tradicional ligou anacronicamente ao feudo europeu medieval, nem mesmo os saques e butins necessários para sua manutenção, mas sim as imagens grandiloqüentes dessas batalhas, os episódios de grande expressão moral, os dilemas e conflitos de figuras como Aquiles, dividido entre a honra ferida e a sede de vingança, enfim, o fundo mítico trabalhado pelo poeta. Diferentemente do contemporâneo Hesíodo, Homero não almejava fixar as lendas gregas originais, mas, através das referências marginais, que geralmente apresentam a filiação divina de seus heróis, toda uma vasta mitologia se revela além do ciclo heroico: os deuses olímpicos intervêm nos acontecimentos, inclusive para mudar o destino dos homens, e a geração titânica de monstros e deuses primordiais é evocada para explicar a origem das coisas ou lembrar a glória de Zeus. Dessa forma, os primeiros grandes poemas escritos da antiguidade clássica são também as primeiras fontes de temas e motivos para a literatura no Ocidente, bem como um objeto privilegiado, durante séculos, pela avaliação crítica erudita. Como aponta Ítalo Calvino, o clássico gera uma “nuvem de discursos sobre si”; no entanto, sempre repelida: talvez a melhor maneira de compreender Homero ainda hoje seja ler o próprio autor.

A posição de precursor torna seus poemas clássicos por excelência, fundadores da genealogia ficcional que nos acostumamos a identificar como tradição ocidental. Qualquer leitor pode, aliás, reconhecer facilmente o lugar do clássico, como afirma Calvino. Tal “vocação para o futuro”, nas palavras de Jacyntho Lins Brandão, trata-se mais de um constante diálogo do que da simples repetição. As tragédias da Grécia Clássica, por exemplo, desenvolveram episódios da guerra de Troia ou tornaram aqueles personagens seus protagonistas, como na Orestia de Ésquilo, iniciada com a morte do rei Agamêmnon por sua esposa Clitemnestra, como vingança pelo assassínio da filha Ifigênia, ofertada à deusa Artemis, na Ilíada, para findar a peste que se abatia sobre as tropas gregas. Já o poeta latino Virgílio tomou Homero como modelo – e repetiu mesmo algumas fórmulas, como a descida ao mundo subterrâneo dos mortos, a descrição de elementos importantes do enredo na imagem esculpida em um escudo, além das óbvias cenas de batalha –, visando, com a escritura de sua Eneida, a superação do mestre grego. Para um exemplo que nos é mais próximo, basta lembrar a obra épica de Camões, Os Lusíadas, que inaugurou a grande escrita em português vernáculo recorrendo ao modelo homérico e evocando elementos daquele ambiente em sua narrativa. Resumindo, Homero fixou um gênero literário adotado por escritores de épocas e locais diversos, a epopeia, quer dizer, o canto do herói, mas também forneceu (e fornece) material para outras formas de expressão literária, como a tragédia acima mencionada.


É, portanto, a história de apropriações e atualizações que nos aproxima tanto de Homero. Ora, se o estético também é histórico, ou seja, se a forma mantém uma relação direta com o contexto cultural em que vigora, a retomada sucessiva do clássico é o que o torna clássico. Isso não significa destituir a obra de valor formal, o que equivaleria fazer tábula rasa de todos os textos de uma mesma sociedade e época, mas compreender que o belo é historicamente construído e regulado. Franco Fortini afirma que os clássicos de qualquer cultura estão “vivos” à medida que também estão “mortos”, quer dizer, em que o abandono do texto pelas diversas “formas de energia antagonista” que eles puderam encarnar em momentos diferentes permite novas leituras e questionamentos, inserindo a obra em novos debates e a atualizando no imaginário das gerações sucessivas. As novas respostas, todavia, precisam levar em conta a trilha de interpretações desenhada. É por isso que os enredos homéricos ainda nos são tão atraentes, capazes de levar multidões às salas de cinema em adaptações fílmicas ou se revelam rica fonte para novas formas narrativas hoje tão difundidas pela comunicação de massa como as histórias em quadrinhos.


Homero, dessa forma, ainda nos toca, ainda é capaz de nos dizer muitas coisas, coisas que sequer estão em seus poemas, mas que se tornaram parte de sua leitura, graças a quase três milênios de relações com o autor. Ler Homero é, assim, a forma mais feliz de se inserir nessa linha complexa e descontínua e, ao mesmo tempo, compreender uma maneira de ver o mundo que ainda nos constitui.

Bibliografia consultada:

BRANDÃO, Jacyntho Lins. Primórdios do épico: a Ilíada. In: APPEL, Myrna Bier, GOETTEMS, Míriam Barcellos (orgs.). As formas do épico: da epopéia sânscrita à telenovela. Porto Alegre: Movimento, 1992, p. 40-82.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FRANCO, Fortini. Clássico. In: Enciclopédia Einaudi. Literatura-texto. Volume 17. Lisboa: Imprensa Nacional, 1989, p. 295-305.
HOMERO. Ilíada (tradução de Carlos Alberto Nunes). Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
HOMERO. Odisséia (tradução de Carlos Alberto Nunes). Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

domingo, 1 de agosto de 2010

A conquista do "País da Solidão"

Acaba de sair artigo em que examino o primeiro livro de Barbosa Lessa sobre a história do RS, em perspectiva também historiográfica (Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo), na revista Fênix (UFU). O texto do Barbosa Lessa historiador acabou ficando muito parecido com a historiografia tradicional, a qual tanto criticou enquanto folclorista. Como, na minha opinião, o trabalho do analista não pode apagar as incoerências de uma obra/autor, vale a leitura um pouco incomodada, mas objetiva, da contradição - talvez aparente, dado que, politicamente, o livro continua afirmando o modelo, atualizado, do gaúcho pampiano, "centauro da pampa".




A conquista do "País da Solidão": Luiz Carlos Barbosa Lessa e a invenção do Rio Grande do Sul


Ainda somos filhos do século XIX. Muito do que constitui a experiência sóciohistórica contemporânea conheceu o mundo a partir das primeiras fábricas capitalistas ocidentais. A expansão industrial não somente consolidou a nova forma de organização econômica baseada na acumulação de capital, mas trouxe consigo novos fenômenos sociais, como o movimento operário, a organização política em partidos e, sem muito tardar, a produção e o consumo de massa. O imperialismo, por sua vez, levou o modelo de vida ocidental para as elites coloniais dos quatro cantos do planeta. Foi nesse momento que outro artefato cultural e político ganhou vida: a nação. Nos acostumamos, desde então, a (nos) pensar em termos nacionais. As lutas e os conflitos, bem como os acordos e as alianças, passaram a girar não mais em torno das dinastias ou casas reais, mas dos estados nacionais. Construímos nossas literaturas buscando a “essência” de nossas nações ou, simplesmente, classificando-as segundo as bandeiras empunhadas por nossos chefes políticos. Em função da nação, remodelamos nossos passados. Desenhamos nossas histórias a partir de genealogias imemoriais que atestam sua antiguidade. Deixamos de ser castelhanos, borgonheses, pomeranos ou correntinos para nos tornarmos espanhóis, franceses, alemães ou argentinos. A pátria, terra de nossos pais, se tornou a grande mãe nação. Aqueles pedaços de chão cuja extensão ou o poderio militar não permitiram uma vida política independente integraram unidades maiores. Os grandes impérios, por sua vez, dividiram-se em nações menores e “politicamente viáveis” ou, ainda, foram separados em regiões administrativas – e culturais – mais próximas do cotidiano dos súditos agora transformados em povo. Nos tornamos, finalmente, castelhanos espanhóis, borgonheses franceses, pomeranos alemães, correntinos argentinos...

[...]
Este texto analisará como a historiografia de Luiz Carlos Barbosa Lessa concebe gaúchos brasileiros. Devido às proporções de um artigo, abordarei em específico o livro Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo, publicado em 1984 como esforço de síntese sobre a história do Estado, em seus três primeiros séculos, identificando como o autor elabora discursivamente a identidade regional afirmando símbolos como “passado comum”, “ancestrais fundadores”, “paisagem e lugares de memória”, “panteão de heróis”, “folclore”, “hábitos” e “costumes”. Trata-se, em suma, de averiguar como a escrita da história é empregada pelo principal teórico do “movimento tradicionalista” para a “naturalização dos atributos associados ao gaúcho e ao Rio Grande do Sul”.

ZALLA, J. A conquista do "País da Solidão": Luiz Carlos Barbosa Lessa e a invenção do Rio Grande do Sul. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2010.


Texto na íntegra: http://migre.me/10UHB