sexta-feira, 9 de julho de 2010

Convite para reler Barbosa Lessa

Literatura e História

Sempre vale o convite. Texto publicado em dezembro passado.


Convite para reler Barbosa Lessa


Se estivesse vivo, Luiz Carlos Barbosa Lessa completaria 80 anos neste domingo. Mas outro aniversário nos faz lembrar escritor e obra: há 50 anos, a editora Francisco Alves, do Rio de Janeiro, publicou o primeiro romance de nosso autor, intitulado Os Guaxos. Premiado pela Academia Paulista de Letras e pela Academia Brasileira de Letras, o texto ganharia mais quatro edições. A última, lançada no recente ano de 2005, integrando a primeira fase do projeto de editoração da obra completa do autor, que uniu uma editora e uma empresa locais e o Ministério da Cultura, apresenta o livro como “o romance do gaúcho a cavalo”. O epíteto ressalta um importante aspecto do texto, mas não dá conta das múltiplas questões que o autor nos coloca.

O “centauro dos pampas” do romantismo oitocentista é um dos modelos de herói cantado pelo autor. Mas não o único e muito menos o mesmo. O andarengo errante e o peão da estância se confundem e se modificam para rebater o “gaúcho a pé”. Neste confronto, outros modelos de ser gaúcho (socialmente e literariamente marginais) ganham vida e voz: as mulheres da estância, as prostituas, o negro. Com eles, a denúncia da pobreza, da exclusão e do preconceito. Denúncia que não poupa sequer os marginais da responsabilidade pelas opressões que também efetuam.

Mas por que, então, a obra de Barbosa Lessa é hoje em grande parte lembrada pela presença do gaúcho tradicional? Em 1947, o jovem jornalista free lancer, que ainda se assinava como Luiz Carlos Lessa, tomou conhecimento das atividades de um grupo de estudantes do Colégio Júlio de Castilhos empenhado na recuperação das tradições gauchescas. A partir de então, o projeto intelectual de Lessa passou a se confundir com o projeto coletivo tradicionalista. Sua literatura, assim como suas pesquisas folclóricas, dialogavam com as demais perspectivas e possibilidades de construção do movimento e disputavam a definição de seus principais marcos. Mas também debatiam a própria existência do “gaúcho a cavalo”, posta em cheque pela crítica de autores da geração realista da década de 1930, como Cyro Martins e Ivan Pedro de Martins. Como dito, nosso autor assimilou a denúncia social na atualização do mito, elaborando uma literatura que se colocava entre e contra o ufanismo do gauchismo romântico tradicional e o “disforismo”, muitas vezes resignado, do modelo do gaúcho a pé.

A estada de cerca de 20 anos na cidade de São Paulo afastara Barbosa Lessa do tradicionalismo, mas não da atividade intelectual. Entretanto, a capital gaúcha que encontra em seu retorno, na década de 70, parecia lembrar o autor como pai de filho único: o agora organizado Movimento Tradicionalista Gaúcho. A crítica marxista da década de 80, que denunciara os vínculos estreitos entre o MTG de então e os interesses das classes dominantes tradicionais em nosso Estado, acabara por estender tal avaliação não somente aos primórdios do tradicionalismo, mas também aos gauchismos literários precedentes. A um Barbosa Lessa marcado pela militância na formação do movimento e pelo diálogo com a tradição literária regionalista caberia o estigma e a aversão da academia.

A recuperação do escritor é um processo recente, que data do final dos anos 90, com sua inclusão em alguns manuais de literatura gaúcha e com sua escolha como patrono, em 2000, da Feira do Livro de Porto Alegre. É preciso, então, reler Barbosa Lessa despido do estigma. Contextualizado, Os Guaxos revela os embates travados pelo autor e as inovações de suas apostas literárias.

O livro narra a saga de Zacarias em sua tentativa de deixar a vida insegura de gaúcho errante para “sentar praça” e constituir família. Dessa forma, contra a crise da economia rural que assolava o Rio Grande, tal personagem predicava a fixação do homem no campo, valorizado e socialmente amparado. Contra uma cultura gauchesca misógina, a “prenda” Celita conferia um espaço no mito tão grande quanto aquele que as mulheres deveriam assumir na sociedade do pós-guerra. Contra a discriminação e o preconceito, Barbosa Lessa ainda denunciava as agressões sofridas pelas “chinas” do Passo e a dura vida do negro na Estância.

Os Guaxos revela, assim, um mundo campeiro mítico ainda vivo na experiência social. Vivo pela proximidade com a realidade rural contemporânea, mas principalmente pela importância das questões que nos coloca. Questões que, no campo e na cidade, ainda são nossas.
ZALLA, J. Convite para reler Barbosa Lessa. Caderno Cultura (Zero Hora). Porto Alegre, 12/12/2009, p. 3.
Também disponível em: http://migre.me/VBUH

Um comentário:

Dilso J. dos Santos disse...

Grande mestre, quando leio seus textos tenho vergonha dos meus hehehehe. Pelo que vi essa é apenas a ponta do iceberg, uma vez que esse texto é uma pequena parte de sua dissertação. Acertei? Tu Estás assustadoramente, cada vez melhor!!!
Um grande abraço!!!