segunda-feira, 5 de julho de 2010

Será o digital um novo universal?

Opinião

Texto publicado hoje na edição on-line do jornal O Globo. Segue na íntegra.


Será o digital um novo universal?


A revista Época publicou, em março deste ano, entrevista com a educadora australiana Sue Bennet sobre a chamada "geração de nativos digitais". A partir da percepção de que os avanços tecnológicos têm sido incorporados cada vez mais ao cotidiano, implicando a alteração de hábitos e costumes, diversos intelectuais vêm apontando para o surgimento de características cognitivas diferenciadas entre as novas gerações. Tudo se passa como se a socialização na era digital formasse super-homens com aptidões tecnológicas praticamente inatas. Mas tal avaliação, como argumenta Bennet, se revela superficial.

Como se a lógica de sustentação já não fosse suficientemente contraditória, colocando no mesmo nível causal do fenômeno tanto a pressão social quanto a existência de novos elementos congênitos, os arautos da chamada "geração y" insistem na suposição pouco fundamentada de que jovens nascidos a partir dos anos 1980 seriam propensos a dar respostas corretas e mais rápidas, portanto, de maneira mais eficiente, a problemas específicos de nosso tempo, seja no mercado de trabalho, no espaço público ou na vida privada. Dessa forma, tais analistas operam com uma espécie de corte ontológico entre o homem pré e o homem pós-digital, atualizando, ainda que inconscientemente, pelo menos no âmbito do senso comum, as antigas e desacreditadas especulações sobre a "natureza humana". Uma espécie de nova essência estaria assim emergindo no entresséculo XX-XXI, unificando o recortado e múltiplo homem pós-moderno sob a égide da tecnologia.

A contra-argumentação, proveniente de olhares mais atentos, como o de Bennet, evidentemente passa pela base epistemológica das modernas ciências humanas, que colocaram em cheque a filosofia metafísica: só nos tornamos homens e mulheres em sociedade. Se hoje somos hábeis na manipulação de computadores, agendas digitais e telefones móveis com funções tão variadas e distantes da original como tirar fotografias e reproduzir sinal de televisão, por exemplo, isso se dá pela relação social que mantemos, em maior ou menor medida, com o desenvolvimento técnico-científico; ou seja, não se trata de um privilégio dos jovens. Bennet é enfática: "Enquanto você tiver saúde, conexão com o mundo e envolvimento com outras pessoas, terá meios para se atualizar com a tecnologia, sem limite de idade."

Não podemos negar a existência de uma "era digital", caracterizada pelo avanço tecnológico e sua importância crescente nas sociedades contemporâneas. Entretanto, o alerta de Bennet se dirige a possíveis fundamentalismos digitais, que tornam o tecnológico a medida de todas as coisas, desvalorizando outras maneiras de se relacionar com o mundo. Mais urgente ainda é a recomendação contra o determinismo digital, que constrói uma visão unívoca de "homem moderno", e torna a diferença de gerações um conflito irreconciliável, ao negar teoricamente a possibilidade de se expressar digitalmente com proficiência a uma ainda grande parcela da população.


ZALLA, J. Será o digital um novo universal? O Globo (on-line). Rio de Janeiro, 05/07/2010.

Também disponível em: http://migre.me/UBru
Entrevista com Sue Bennet: http://migre.me/UBWx

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