quinta-feira, 15 de julho de 2010

Reinventar as tradições, ainda e novamente

Identidade

Para continuar na temática: texto publicado em setembro passado, às vésveras das comemorações da Semana Farroupilha, no Jornal da Universidade (UFRGS).


Reinventar as tradições, ainda e novamente

Mais uma vez, ao nos aproximarmos das comemorações em torno do episódio farroupilha, os signos da identidade regional são retomados, atualizados e disputados. Homens e mulheres da política às artes, oriundos das mais variadas forças sociais e instruídos por matizes ideológicos diversos, reivindicam o “centauro do pampa” e traçam continuidades entre o gaúcho de outrora e suas próprias trajetórias, seus projetos e as ideias que representam.
A “sentinela das coxilhas” foi, historicamente, ao mesmo tempo alvo e produto de apropriações e interpretações diferentes e mesmo conflitantes. O romantismo da segunda metade do século XIX construiu, é bem verdade, um núcleo simbólico forte o suficiente para informar de maneira renitente representações e práticas sociais ao longo do século seguinte. Grosso modo, o campesino da Pampa, gaudério errante e depois peão da estância, foi pintado em cores vibrantes, elencado como símbolo da nacionalidade e herói da história regional. O meio físico e social marca seu caráter: percorrendo os vastos desertos verdes no lombo do seu cavalo, ele é guerreiro, bravo, trabalhador e livre.
Mas a história do mito também é permeada de transformações. Esteio do Brasil no Prata, defende com garra o território e luta contra a tirania, não importa de onde ela vier – do além-fronteira, do Império Brasileiro ou dos próprios irmãos degenerados pelo poder. Pouco a pouco, o ethos campeiro contamina toda a sociedade. O campesino torna-se elite. O mito da democracia rural apaga as diferenças entre peão e patrão, e o gaúcho passa a figurar como o grande estancieiro. Seus valores e costumes são, enfim, apresentados como arrimo e legitimação da grande propriedade e, em seguida, de todo o status quo. A valorização da figura torna-o sinônimo de todo habitante do estado, e o gentílico “gaúcho” rompe, enfim, a oposição campo e cidade. Se todos somos gaúchos, os ideais por eles defendidos viveriam em nossas almas e marcariam nosso semblante. Trata-se, ainda e novamente, de definir tais ideais.
Um novo e importante capítulo da construção simbólica do gaúcho e da identidade regional nele fundamentada tem lugar na produção acadêmica desenvolvida a partir do final dos anos 70 e, principalmente, na década seguinte. A nova geração de intelectuais renega e desconstrói a literatura regionalista (romântica e ufanista), e a historiografia tradicional analisa, na sequência, o ainda recente movimento tradicionalista. O tom de denúncia marca suas páginas e as ligações dos eruditos do passado com a elite latifundiária são apontadas. O conceito de “ideologia”, fundamentado em uma perspectiva marxista ortodoxa, separa mito e realidade, e o universo gauchesco é encarado como invenção justificadora das classes dominantes. A esquerda política organizada assume a avaliação acadêmica e passa a desmascarar os usos do mito. Para lutar contra a exploração social no Rio Grande do Sul, é necessário atacar a fábula gaudéria.
Este tipo de interpretação só muito recentemente começou a ser matizada. Nos últimos anos, pesquisas em Antropologia Social e novas dissertações e teses em História passaram a questionar o mecanicismo das análises anteriores. Buscando referenciais e aportes teóricos em trabalhos como o do sociólogo Pierre Bourdieu e dos especialistas da chamada Nova História Cultural, o foco dos estudos tem-se deslocado da desmistificação para o exame da construção social da realidade. Práticas e discursos ganham o mesmo peso na elaboração do real e a denúncia cede espaço à compreensão. Os desenvolvimentos dessa produção intelectual ainda nos escapam ao horizonte, mas o certo é que, novamente, a figura do gaúcho transforma-se. E, mais uma vez, a academia reinventa as tradições, com uma crítica aberta e plural e que, ao mesmo tempo, desconfia das aparências e evita soluções fáceis. O papel do cientista social na elaboração do seu objeto, então, evidencia-se e torna-se outro foco de reflexão.
Dessa forma, o cenário das disputas simbólicas em torno da identidade regional se descortina ao cientista, mas também ao militante. Novos arranjos parecem possíveis e a esquerda entra no jogo identitário não mais para negar, mas para reconstruir o gaúcho popular e carregá-lo de ideais libertários. O que veremos nos próximos dias será mais um episódio desse embate - afetado, entretanto, pelas aparas do nosso tempo. Esquerda e direita, tradicionalistas e leigos, ciência e senso comum encherão as páginas dos jornais locais, conclamando irmãos, narrando e celebrando feitos, analisando práticas e discursos, desconstruindo (ainda) mitos e emblemas e, de alguma forma, consciente ou inconscientemente, posicionando-se na longa batalha pela definição de nossa identidade coletiva.
ZALLA, J. Reinventar as tradições, ainda e novamente. Jornal da Universidade (UFRGS). Porto Alegre, setembro de 2009, p. 4.
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