segunda-feira, 12 de julho de 2010

Gaúchos e/ou brasileiros (?)

Identidade

Texto sobre a construção da identidade gaúcha e sua relação com a brasilidade publicado durante a Semana Farroupilha do ano passado.


Gaúchos e/ou brasileiros (?)


Com as recentes comemorações da Semana da Pátria e da Semana Farroupilha, gostaria aqui de pensar as relações entre região e nação em nossa história cultural. As particularidades do Rio Grande do Sul, sejam físicas, socioeconômicas ou culturais, são comumente usadas como motivo de brincadeiras entre gaúchos e demais brasileiros, ao ponto de ouvirmos, como já apontado pelo antropólogo Ruben Oliven, desconfianças sobre este “estranho país do Sul”. A proximidade com as nações platinas, as trocas por ela ocasionadas e uma história de fronteira móvel e em conflito com o poder central podem fortalecer esta avaliação. Ainda que o peso das colônias de migrantes na sociedade sul-rio-grandense tenda cada vez mais a caracterizá-la como “um pedaço da Europa no Brasil” (o que marca outro distanciamento com o todo nacional), são os signos do gauchismo que prevalecem na definição de nossa identidade cultural. Politicamente, o discurso regionalista gaúcho baliza tanto reivindicações de autonomia administrativa e/ou de destaque no cenário brasileiro quanto projetos, bastante malsucedidos, é verdade, de independência do Estado. Mas em que medida o gaúcho, aquele de bombachas, botas e esporas, e que nos deu o nominativo de habitante do Rio Grande do Sul, foi pensado como mais ou menos brasileiro?

Nos anos 90, o muito conhecido episódio de tentativa, por um pequeno grupo de seguidores de Irton Marx, hoje vereador de Santa Cruz do Sul, de fundar uma República da Pampa ganhou destaque na imprensa do centro do país através da exposição de seu líder em um dos programas televisivos de maior audiência dos domingos. Uma bandeira foi desenhada e adesivos com os novos símbolos da Pampa eram vistos com certa facilidade em vidros traseiros de viaturas no Estado. Mais de uma década depois, não é menos difícil encontrarmos sites e blogs que bradam pela “liberdade do povo gaúcho” se espalhando pela internet. Desconsiderando-se o tom caricato que muitas destas manifestações adquirem, é inegável que os signos do gauchismo servem a parcelas da população, pequenas, ao que parece, insatisfeitas com a participação do Rio Grande na federação brasileira.

De outro lado, parcelas maiores, e aí podemos incluir os adeptos do Movimento Tradicionalista Gaúcho, não concebem possível se declararem gaúchas sem se sentirem brasileiras. Os fundadores do tradicionalismo, no primeiro boletim informativo do “35” CTG, de 1948, por exemplo, evitavam suspeitas, declarando que não os animava o espírito separatista. O próprio tradicionalismo organizado nasce de uma cavalgada, em 1947, de jovens estudantes do Colégio Júlio de Castilhos durante as comemorações da independência do Brasil. Do fogo da pira da pátria extinto no dia 7 de setembro daquele ano nasce a chama crioula, a ronda gaúcha e as futuras comemorações da Semana Farroupilha. Daí o elo simbólico que une a “parte” ao “todo” em suas maiores demonstrações de civismo.

Mas muito antes disso, na segunda metade do século 19, nossos intelectuais construíram o mito do gaúcho com objetivos claramente nacionalistas. O romantismo literário, que objetivava atingir a essência da nação brasileira, inventariava os tipos regionais, dentre eles, o gaúcho pampiano, “monarca das coxilhas”. Assim, concebido como brasileiro, o gaúcho sul-rio-grandense, enobrecido nas canetas de literatos e historiadores, não teve dificuldades em se tornar símbolo e gentílico do Estado. A recuperação do mito do centauro pelo tradicionalismo também passa pela afirmação de sua brasilidade. Se hoje é possível que símbolos assim desenhados sejam apropriados por “ânimos separatistas” é porque, por muito tempo, ser gaúcho significou ser brasileiro de uma maneira muito particular, paradoxalmente para alguns mais sincera porque opção, para outros mais natural porque forjada pelo tempo.

ZALLA, J. Gaúchos e/ou brasileiros (?). Zero Hora. Porto Alegre, 19/07/2009, p. 19.

Também disponível em: http://migre.me/WjZi

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