sexta-feira, 23 de julho de 2010

Shakespeare e a História: A tempestade (1611)

O objetivo do blog, como dito, também é apresentar textos não publicados, reflexões e críticas de leitura em geral. Para começar, segue abaixo pequeno ensaio sobre a peça de Shakespeare intitulada A tempestade, sob um possível ponto de vista histórico.



Shakespeare e a História: A tempestade (1611)


“O poder de originar é um dom individual, presente em todas as eras mas
evidentemente estimulado por contextos particulares, surtos particulares que só
estudaremos em segmentos, porque a unidade de uma grande era é geralmente uma
ilusão” (BLOOM, 2001:52).

A assertiva de Harold Bloom aponta para duas direções do campo intelectual, às vezes conciliadas na análise cultural, às vezes seguidas unilateralmente, por críticos e historiadores, como caminhos opostos: aquela da invenção criativa individual, comumente superestimada na noção nada dialetizada de “gênio”, e o domínio do social, cujos excessos podem levar à redução estrutural da primeira. A “morte do autor”, proclamada por Foucault, é evidentemente o alvo de Bloom. Pese a negação dessa perspectiva e a eleição da avaliação estética como foco do crítico, o excerto transcrito revela sua preocupação com o diálogo entre a literatura de imaginação e seu contexto de produção, mundo subjetivo e mundo objetivo ligados pela biografia do escritor. Tal é a possibilidade que pretendo explorar neste rápido ensaio: apresentar aquele terreno histórico no qual Shakespeare se moveu e atuou. O histórico deve ser tomado aqui em sentido amplo, como recorte temporal analítico que transita pela política, economia, sociedade e, inclusive, pelo debate literário, domínio de trocas, influências, apropriações e conflitos.

Quando William Shakespeare nasceu, em 1564, a Inglaterra elisabetana passava por um período de relativa paz externa e consolidação interna da monarquia. O absolutismo da dinastia Tudor, segundo Perry Anderson (2004), não pôde constituir, como nos países do continente, um Estado fortemente centralizado: a ausência de rebeliões camponesas não dava motivos à nobreza para suportar um aparato coercitivo oficial fora de seu controle; no sentido inverso, a ausência de um exército nacional permanente tornava menor a recolha de impostos, o que impedia a consolidação de uma burocracia administrativa tão sólida e influente quanto nas inimigas França e Espanha. A posição de relativa independência das elites fundiárias tradicionais do poder real se desdobrava na diversificação de sua base econômica: desde muito a nobreza feudal insular se associara aos interesses mercantis. Isso explica a configuração um tanto contraditória da Londres encontrada por nosso escritor, em torno de 1588: o peso da monarquia era considerável, mas, ao contrário da Paris de Racine, a corte não estendia seus tentáculos a toda urbe; além dos muros da cidade existia um mundo regido por leis próprias, sustentando com o dinheiro do comércio um incipiente mercado de bens imateriais: era lá, junto aos bordéis e tavernas, que se encontrava o teatro.

A condição do ator, e do dramaturgo, era naqueles tempos paralela a dos vagabundos e prostitutas, o que se tornava impeditivo para as ambições nobiliárquicas do filho de John Shakespeare, curtidor de peles e luveiro de Stratford. As estratégias de legitimação intelectual e social passavam, então, pelo reconhecimento público: era o aplauso da plateia e a possibilidade conquistada de voltar à cena que movia a dramaturgia inglesa. Depois da consagração, as peças poderiam ser representadas na corte. Quando Jaime I ascendeu ao trono, em 1603, iniciando a dinastia Stuart, Shakespeare já gozava uma posição confortável. A grande receptividade de seus poemas narrativos impressos e de suas peças lhe permitiram a renda necessária para a entrada como sócio na companhia de atores “The Lord Chamberlain’s Men”. A consagração como escritor também possibilitara, em 1596, a obtenção de um brasão para seu pai, o que lhe conferia título de nobreza. A nobilitação conquistada aumentava, assim, seu prestígio e lhe permitia fugir das suspeitas que, como dito, pesavam sobre os atores, vistos como “homens sem amo” (SMITH, 2008: 24). O patrocínio real transformou os Chamberlain’s Men em King’s Men. De 1604 a 1605, a companhia se apresentou onze vezes na corte, para entretenimento do monarca. Essa relação de patronato leva a análise ideológica dos últimos textos de Shakespeare a encontrar neles uma correspondência política com o absolutismo almejado pelo rei, que empreendera novas tentativas de centralização do poder, e mesmo com colonialismo inglês em gestação.

Exemplo desse tipo de interpretação é o artigo de Geraldo Ferreira de Lima (1996) sobre A tempestade. O autor toma o personagem Caliban como alegoria para o novo mundo, primitivo, mas passível de domesticação. Próspero é visto como o agente colonizador, que ocupa o espaço da ilha de Sicorax e domina seus habitantes originários, incluindo o etéreo Ariel: “Prospero, com sua ideologia colonialista, ao escravizar Ariel, lança uma nova modalidade de servilismo, e inverte a relação humano-sobrenatural, ao transformar-se em agente plenipotenciário dessa ideologia” (LIMA, 1996: 89). Mesmo concordando com a avaliação das relações entre os personagens, não podemos esquecer a recomendação há muito lançada pela teoria literária de não confundir a voz do narrador ou os papéis desempenhados no texto com as posições do próprio autor. Este é o primeiro erro da interpretação, que encara Shakespeare como servo, ainda que inconscientemente, da ideologia dominante. O segundo problema se dá justamente sobre a caracterização de suposta ideologia. Nesse sentido, a História explica o texto ao refutar a análise de Lima: como mostrado por Perry Anderson, a frota naval inglesa, em construção no período, não possuía fins marciais, mas somente comerciais; seu uso bélico se restringia aos saques e pilhagens. O colonialismo naval inglês é, portanto, produto do século seguinte, o que demonstra o anacronismo da leitura de Lima.

Não obstante, o mesmo artigo aponta para relações extratextuais mais complexas: aquelas entre a peça e a produção literária anterior ou contemporânea. Gostaria, então, de chamar a atenção para a contextualização discursiva da obra. Segundo Lima, Shakespeare sofreu influências espanholas, através da leitura de Noches de Invierno de Antonio Escalora ou Antonio de Eslava (1570-?), conjunto de narrativas estruturadas à maneira do Decameron de Bocaccio, que conta, entre elas, com a História de Nicephoro e Dardano, de trama análoga:

“Dardano, rei da Bulgária, é um mago virtuoso que, destronado por Nicephoro,
usurpador da Grécia, embarca com sua filha única, Serafina, em uma pequena nau,
e constrói no meio do oceano um formosíssimo palácio submarino, para residir.
Serafina cresce ali. Quando se torna mulher, o mago, disfarçado de pescador,
captura o filho do usurpador de seu país e o leva à sua residência submarina. O
príncipe e Serafina casam-se, o usurpador morre, o mago retoma seu reino e,
finalmente, transfere o poder ao jovem casal” (CARNEIRO apud LIMA, 1996:
90).

A apropriação da narrativa também se revelaria pelo uso de nomes hispânicos na peça, como Próspero, Ferdinando, Gonzalo, Alonso, Francisco, Sebastian, Miranda e Caliban (anagrama de “canibal”).

A segunda grande fonte de inspiração para nosso autor seria a tradição utópica. O discurso do conselheiro Gonçalo, na Cena I, do ato II, sobre a nação imaginária que ele gostaria de instituir, se lhe fosse dado tal direito, na ilha, lembra em muito trecho dos Ensaios do pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), publicados em 1580:

“...é uma nação, eu diria a Platão, na qual não há qualquer espécie de tráfico,
nenhum conhecimento das letras, da ciência e dos números, nenhum uso da
servidão, de riqueza ou de pobreza, nada de contratos ou de heranças,
partilhas
e ocupações; [...] nenhum metal, nem uso de vinhedos ou de
cultivos...”
(MONTAIGNE apud LIMA, 1996: 81).

A título de comparação, segue a transcrição da fala de Gonçalo:

“Em minha nação eu executaria (ao contrário do que é costumeiro) tudo e todos:
nenhuma espécie de comércio eu admitiria; nenhum tipo de magistratura; não
haveria homens letrados, nenhuma riqueza, nenhuma pobreza, nem o uso da
criadagem: nada de amos, nada de serviçais, nada. Contratos, sucessão por
hereditariedade, demarcação de terras, fronteiras, lavouras, vinhedos, ...nada!
Não se usava nem metal, nem cereais, nem vinho, nem azeite. Ninguém teria uma
ocupação. Ócio para todos! ...inclusive as mulheres... e todos seriam inocentes
e puros. Uma nação e nenhuma soberania” (SHAKESPEARE, 2007: 43-44).

Em recente artigo, Fátima Vieira (2009) examinou a relação entre A tempestade e o texto utópico, definido como um sub-gênero literário com “particularidades efabulatórias e estrutivas” que seguem o clássico Utopia, publicado por Thomas More em 1516. Mas se existe na fala de Gonçalo a intenção de desenhar uma comunidade ficcional ideal, falta-lhe a enunciação de uma ordem alternativa de organização social. Dessa forma, ainda que parafraseando Montaigne, a peça de Shakespeare se revela mais próxima do modelo da Arcádia, ou seja, da negação e rejeição da ordem social vigente, do que da utopia. A presença desta, segundo Vieira, não se dá propriamente no texto, mas no espaço da intertextualidade, ou seja, no contexto discursivo.

Outros elementos aparecem no plano do intertexto, como a referência a relatos e episódios de naufrágio, tempestade e de eventos semelhantes aos narrados na peça e amplamente difundidos no período. Como exemplo, podemos citar o rapto, ocorrido em 1526, da espanhola Lucia Miranda pelo cacique Mangoré, que com ela queria se casar, no primeiro estabelecimento colonial do Rio da Prata, e que participava do imaginário europeu sobre o novo mundo. Outro episódio aproveitado como tema foi o naufrágio de um navio inglês, em julho de 1609, que transportava o governador da colônia da Virgínia. Um ano depois, os náufragos chegavam a Jamestown em dois pequenos barcos por eles construídos (LIMA, 1996: 81).
É, portanto, a articulação criativa de elementos discursivos e de casos então recentes ou fortemente marcados na História da Europa ocidental que dota o texto de Shakespeare de originalidade. O aproveitamento de enredos e textos ensaísticos precedentes não pode, nesse momento, ser pensado como plágio, já que, como apontado por Harold Bloom, esta é uma distinção legal e não literária, “do mesmo modo como o sagrado e o profano formam uma distinção política e religiosa, e não são absolutamente categorias literárias” (BLOOM, 2001: 78). A composição da literatura de imaginação passava, então, pela cópia. Mas as respostas individuais e a excelência formal do texto de Shakespeare tornam sua obra única. Ao se questionar sobre o papel central do escritor inglês no cânone literário, Bloom aposta no valor estético como componente de diferenciação. Mas a norma que rege a beleza é próxima da “universalidade”, capacidade de tocar gerações e culturas diversas. Se o estético deve ser considerado um dos elementos da perenidade da obra, em Shakespeare, ele ganha grande repercussão graças à vocação multicultural, produto dessa composição plural de que falamos acima. A apropriação de – e interlocução com – outros textos e narrativas sociais mais amplas, no bojo de um processo histórico que marcaria o mundo ocidental por séculos, mune a qualidade literária de plasticidade suficiente para ser retomada, lida e encenada com vivacidade em diversos pontos do globo até os dias de hoje.

Referências:

ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004.
BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LIMA, Geraldo Ferreira de. The tempest: reafirmação do colonialismo inglês. Sitientibus, n. 14, 1996, p. 79-93.
SMITH, Cristiane Busato. Shakespeare: o homem e o mito. Revista e-Letras, n. 17, 2008, p. 16-28.
SHAKESPEARE, Wiliam. A tempestade. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2007.

VIEIRA, Fátima. O espaço da utopia em A tempestade, de William Shakespeare. Revista FronteiraZ, v. 4, n. 4, 2009, p. 1-8.

Um comentário:

Dilso J. dos Santos disse...

O que eu posso dizer desse texto... É um verdadeiro primor, é isso que é!
Muito bacana como você fundamenta, com bases históricas,e alicerçado, principalmente, por Perry Anderson (esse autor eu conheci na cadeira de História Moderna) sobre o absolutismo e a situação em que se encontrava a Inglaterra no período de concepção e fluência da obra Shakespeareana. Sabemos sim que tal Estado (Ingaterra) teve uma história diferenciada em relação ao restante europeu, mas isso é outra história que tu conheces melhor do que eu... Adorei o tessitura - sempre com uma pontinha de inveja. Tenho muito orgulho de ti, principalmente quando vejo contruções como essas. Edificações que só são possíveis através de mãos talentosas de um verdadeiro MESTRE: as suas.